Que futuro para a Palestina?

Quanto este número da AC chegar a casa dos assinantes, é possível que Gaza já não exista. Ou porque a sua população foi compulsivamente transferida para o Sinai ou porque o horror absoluto a que se chegou não permite sequer que a vida continue: a sobrelotação no Sul da Faixa (consequência da deslocação forçada de 1,8 milhões de pessoas da parte Norte e Central – quase 80% da população) a impossibilidade de bombear os esgotos e o colapso do sistema de saúde trazem a iminência de epidemias. Israel destruiu as casas, escolas, hospitais, universidades, bibliotecas, livrarias, mesquitas, igrejas, comércio e infraestruturas na parte norte. A cidade de Gaza, a maior cidade palestiniana de todo o mundo, foi arrasada e está sob escombros (e com gente sob os escombros). Vimos as imagens chocantes dos residentes do norte a deslocarem-se para o sul, muitas vezes a pé, doentes, com crianças ou mesmo crianças não-acompanhadas, pela estrada de Salah al-Din (uma das mais antigas do mundo), e a serem vítimas de disparos pelas tropas ou aviação israelitas. Todos são bombardeados sem dó nem piedade. Não há um só lugar seguro em Gaza. Trata-se de um castigo coletivo, um genocídio e de limpeza étnica.

Gaza está cercada e sob bloqueio total (terrestre, marítimo, aéreo) por Israel desde 2007. Nem pessoas nem mercadorias podiam sair ou entrar no território sem autorização de Israel. Excecionalmente, por motivos médicos extremos, eram permitidas saídas para a Cisjordânia. A economia baseou-se sempre muito no comércio e portanto, na circulação de pessoas e mercadorias. O cerco e o bloqueio vieram impedir essas trocas comerciais, bem como dificultar ao extremo uma outra atividade, a pesca: os pescadores de Gaza só estão autorizados a pescar dentro de 3 milhas náuticas, sendo que a pesca está totalmente proibida desde 7 de Outubro.  

Em Gaza há quase 1,2 milhões de refugiados (pessoas que foram expulsas da Palestina histórica em 1948 ou os seus descendentes). A ajuda humanitária a Gaza tem sido fundamental desde que começou o cerco e o bloqueio em 2007. Cerca de 80% da população de Gaza depende dessa ajuda, não só do ponto de vista da distribuição alimentar como pelo facto de a UNRWA (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East) assegurar quase todo sistema escolar. Desde 7 de Outubro foram mortos 108 dos seus 13 mil trabalhadores humanitários em ataques ou bombardeamentos por Israel.

A Cisjordânia em vias de ser anexada

Há muito que a Cisjordânia, além de ocupada, tem vindo a ser fragmentada. Há cerca de 400 mil israelitas judeus a viver em colonatos de onde as populações palestinianas foram expulsas (e cerca de 250 mil em Jerusalém Oriental). Esses colonatos não são meia-dúzia de casas ou bairros espalhados na paisagem. São cidades de 20 mil ou 30 mil habitantes, localizados em sítios estratégicos, muitas vezes em cima de aquíferos e em terra mais fértil. Há estradas e mesmo autoestradas que ligam entre si os colonatos e os ligam a Israel, mas por onde os palestinianos não estão autorizados a circular. À ocupação junta-se, pois, a descontinuidade territorial. O projeto da anexação total da Cisjordânia está em curso. Mais de 60% do território está ocupado pelos colonatos ou por militares.

E há muros. Muitos muros. Cerca de 700 quilómetros de betão e arame farpado retalham a Cisjordânia. Dos cerca de 600 checkpoints, apenas 36 separam a Cisjordânia de Israel. Todos os outros separam palestinianos de palestinianos. Para se deslocarem, estes têm de passar por estes controlos dentro da sua própria terra.  O checkpoint de Qalqilya, que separa Ramallah de Jerusalém, é conhecido por haver um número elevado de grávidas que dão à luz na fila de espera para passarem o checkpoint e se dirigirem ao hospital. Seria preciso quase um livro para descrever o diversificado, complexo e perverso sistema de vistos criado por Israel, que se destina não apenas a impedir a circulação, mas a oprimir e humilhar. Na Cisjordânia ocupada, é a lei civil de Israel que se aplica aos judeus, enquanto os palestinianos estão sujeitos à lei militar. Daí decorrem as prisões administrativas, os presos políticos (incluindo crianças), os julgamentos em tribunais militares.

Que planos têm Netanyahu e Biden para Gaza e para o “pós-guerra”?

Mas se a impunidade de Israel tem sido uma constante ao longo do tempo, Netanyahu e os seus ministros vêm criando uma nova doutrina: não se coíbem de chamar animais aos habitantes de Gaza, e há vozes a pedir a aniquilação total (até por bomba nuclear) Israel coloca-se assim mais uma vez totalmente à margem do direito internacional: uma escola deixou de ser uma escola, um hospital deixou de ser um hospital, até os bebés prematuros que lutam pela sua sobrevivência em incubadoras são deixados morrer, bem como doentes inválidos e com dificuldade em se deslocar. Tudo é alvo porque tudo pode ser local de abrigo para o Hamas. A ONU é inimiga de Israel e o governo israelita pede a demissão de Guterres, facto inédito.

Mas vale a pena estabelecer aqui uma pequena cronologia:

– A 13 de Outubro, um documento do ministro responsável pelos serviços secretos israelitas colocava três cenários possíveis para o “pós-guerra” em Gaza. O ponto comum era a “eliminação do Hamas”, mas um deles claramente explicitava a expulsão de todos os habitantes de Gaza para o Sinai. 

– A 31 de Outubro o jornal Times of Israel dava conta que o plano seria a transferência dos palestinianos de Gaza para o Sinai (Egito)

– No princípio de Novembro Netanyahu explicitou melhor o seu plano: “depois da eliminação do Hamas, Gaza será desmilitarizada e deixará de ser uma ameaça para Israel. As forças armadas (IDF) continuarão a ter controlo de segurança sobre Gaza para evitar o terrorismo. Em todos os lugares onde não há controlo de segurança por parte de Israel, o terror regressa (..). O mesmo acontece na Cisjordânia. Por isso não estou de acordo em deixar o controlo de segurança em quaisquer circunstâncias”.

Apesar de Biden dizer que um cenário possível do pós-guerra é a construção de dois estados, a realidade trai as declarações enfáticas. Num artigo muito recente, o historiador palestino-americano Rashid Khalidi, fala-nos do pedido feito ao Congresso americano a 20 de Outubro de mil milhões  de dólares para ajuda militar à Ucrânia e a Israel, incluindo uma alínea na rubrica “Migração e auxílio a refugiados” para “eventual necessidade de habitantes de Gaza fugirem para os países vizinhos”, para “deslocações além-fronteiras” ou “para o que venha a ser necessário fora do território de Gaza”

Não deixa de ser curioso que tanto os EUA como a EU, que sempre impediram a solução de dois estados (desde os acordos de Oslo em 1993), nunca obrigando Israel a cumprir com os acordos, tenham ido buscar essa possibilidade ao caixote do lixo da história para onde a tinham atirado. Estarão mesmo dispostos a deixar de financiar Israel e obrigar à retirada dos territórios ocupados da Cisjordânia e Jerusalém? E a forçar Israel a acabar com a ocupação e o Apartheid? E a deitar abaixo os muros e os checkpoints? E a reconstruir Gaza? É que sem isso não haverá estado palestiniano.

Presente e futuro próximo

As várias diplomacias desdobram-se em contactos em Ramallah com a Autoridade Palestiniana e há em Israel (e não só) quem defenda que “depois da guerra” Gaza deveria ser governada pela Autoridade Palestiniana. 

O certo é que desde 7 de outubro os colonatos têm crescido. Famílias inteiras da Cisjordânia têm sido violentamente expulsas de suas casas pelos colonos, muitas vezes com o apoio ou cumplicidade do exército. A lógica é a mesma: limpeza étnica, tornar os territórios ocupados “livres” de palestinianos. Desde 7 de Outubro, foram mortos 237 palestinianos e quase 3 mil foram feridos pelas forças israelitas na Cisjordânia ocupada. 

No momento em que escrevemos, em finais de novembro, a pausa humanitária já começou, de forma a possibilitar a troca de reféns em Gaza por presos políticos palestinianos nas prisões de Israel ou na Cisjordânia ocupada, onde Israel instalou prisões. Netanyahu já tornou claro que a pausa de 4 dias não implica o fim das hostilidades e que Israel retomará a tarefa de eliminar o Hamas. Não haverá, portanto, cessar-fogo. Mesmo durante estes dias, Israel vai continuar as operações na parte norte da Faixa, e já avisou as pessoas deslocadas no sul de que estavam proibidas de regressar às suas casas no Norte.

A luta por um verdadeiro cessar-fogo tem de continuar. Não fossem as mobilizações de centenas de milhares ou mesmo milhões que, por todo o mundo, têm exigido um cessar-fogo, provavelmente nem esta pausa humanitária teria sido possível. Nessas mobilizações vale a pena destacar a importante presença de organizações judaicas anti-sionistas que que se têm mobilizado com slogans fortes como “Not in our name” ou “Never again is for anyone”. No plano interno de Israel, as famílias dos reféns têm-se mobilizado não só pelo regresso dos seus próximos, mas também exigindo um cessar-fogo e opondo-se à vingança que Israel está a fazer em Gaza.

Só a solidariedade faz sentido e pode salvar Gaza