Das ruas para sair da rua

É comum todos os debates sobre habitação começarem com alguém a dizer que o direito a uma casa é o direito esquecido da nossa democracia. Hoje, olhando para a centralidade que o tema tem no debate político, chega a ser desarmante ver como ninguém percebeu a importância que a casa tem para todos os outros direitos das pessoas, mesmo quando a voragem da especulação já nos entrava pela nossa vida adentro.

O tempo da maioria absoluta foi marcado pelos grandes processos unitários e com força expressiva pelo direito a uma casa. A força destas manifestações foi tão mais intensa e tão mais surpreendente porque foi erigida sem a capacidade que, por exemplo, uma estrutura sindical ou um partido político podem trazer para um processo. A força foi a dos movimentos e dos ativistas que levaram a cabo uma estratégia de alianças que não excluiu ninguém e que, por isso, se mostrou capaz de dar resposta a um problema central da vida das pessoas. Isto significa que não há processos inevitáveis, de geração espontânea, que se ergam sem ativismo, sem organização. Portugal vive muitos outros dramas sociais e, por isso mesmo, é significativo que tenha sido a luta por uma casa a conseguir condensá-los na sua luta. E, finalmente, a força destes movimentos foi a capacidade de impor um discurso político à esquerda que não se pensava possível há uns anos.  

Em Portugal, construímos as nossas políticas públicas de habitação com base na ideia de propriedade privada e incentivando a banca a dar crédito mais barato para a compra, o que foi o maior dos favores ao setor da construção civil. Mais tarde, a financeirização da habitação apanhou um país impreparado para responder politicamente a esta nova realidade.

Neste cenário, a esquerda viveu sempre à defesa. Falar para um país de mais de 70% de proprietários é eleitoralmente arriscado se quisermos debater limites à propriedade privada. Talvez por isso era comum ouvirmos na esquerda argumentos que, sabemos hoje, chocam com uma política de esquerda para a habitação: falamos das grandes preocupações com o alojamento local como rendimento para a classe média, falamos do sempre presente argumento dos pequenos proprietários que vivem das rendas dos seus imóveis ou, para dar mais um exemplo, dos mantras liberais sobre o controlo de rendas que contaminavam o pensamento à esquerda.

As manifestações Casa para Viver e o Movimento Referendo pela Habitação em Lisboa não obtiveram – porventura, ainda – as vitórias que desejavam: mudar radicalmente as políticas públicas de habitação. O fim dos vistos gold, as promessas de fim do regime do residente não habitual ou as pífias limitações ao Alojamento Local não são as vitórias esperadas. Nem a limitação a aumentos de renda nos novos contratos – a melhor medida do pacote mais habitação e a maior vitória dos movimentos acima citados – chega para podermos dar por acabado este processo.

À certeza de que a habitação continuará a ser um dos temas centrais da vida das pessoas nos próximos anos urge juntar a certeza de que a capacidade de resposta a este problema se mantém. Ao que referi acima – de que não há processos de luta de geração espontânea – junta-se outra ideia, a de que qualquer movimento deve, constantemente, repensar a eficácia das suas ações e ter a criatividade de conseguir manter a intensidade da luta de forma a agregar forças.

Houve, porém, vitórias importantes que se retiram dos processos dos últimos anos. Hoje fala-se de controlo de rendas, de fim do alojamento local, de limitação de compra de imóveis a não residentes, medidas concretas que nada têm que ver com o anódino debate a que estávamos habituados sobre uma eventual e abstrata revisão do NRAU ou sobre alterações pontuais à lei do arrendamento. As grandes manifestações de 1 de abril e 30 de setembro mudaram a esquerda, o pensamento que esta tinha sobre a habitação, criaram novos ativistas e deram experiência militante concreta a quem participou nestes processos. Numa palavra, estiveram à altura do momento que vivemos.