O genocídio em Gaza pelos olhos dos soldados israelitas nas redes sociais – desumanização e impunidade

Desde 7 de outubro que as imagens de gaza não param. Se quisermos, podemos estar 24 horas numa rede social a ver continuamente imagens que são colocadas por palestinianos, por israelitas, por civis, por soldados, por pessoas em Gaza ou fora de Gaza. E, se tivermos um mínimo de sensibilidade, é impossível não ficar desesperado: destruição, escombros, mutilações, cadáveres a apodrecer, aniquilação de famílias, sacos cheios de pedaços de corpos, pais a gritar, crianças traumatizadas, moribundas e esfomeadas, mães a chorar, médicos a operar sem anestesia, pedaços de corpos misturados com lixo e entulho. Uma espiral de horror, sempre a crescer, ficamos sem palavras para verbalizar a dimensão das atrocidades.

Os números são igualmente avassaladores. De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza (em 12 de abril), pelo menos 33.634 palestinianos foram mortos na Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023. Cerca de 70% eram mulheres e crianças. Outros 76 214 terão ficado feridos. As crianças constituíam mais de 13.000 dos mortos no final de março. Mais de 17.000 crianças estavam desacompanhadas ou separadas dos pais. E, de um modo geral, cerca de 70% do quase 1 milhão de crianças e adolescentes da Faixa de Gaza preenchiam os critérios de diagnóstico de Perturbação de Stress Pós-Traumático devido à guerra.

As pessoas deslocadas de suas casas eram cerca de 1,7 milhões em 14 de abril, segundo a UNRWA, e estavam alojadas em abrigos de emergência, em locais informais ou nas proximidades dos abrigos e locais de distribuição de ajuda. O relatório do IPC (Integrated Food Security Phase Classification) de março refere que a situação de fome era iminente pois 1,1 milhões de pessoas estavam na condição de catástrofe alimentar, o nível mais elevado de carência alimentar. 

Os números do Ministério da Saúde de Gaza não referem a proporção de vítimas civis, mas os estudos variam entre 90% (Euro-Mediterranean Human Rights Monitor), 68,1% (London School of Hygiene and Tropical Medicine) e 61% (Ha’aretz). Em dezembro, o próprio exército israelita estimava que 66% dos mortos fossem civis. Mesmo considerando apenas o menor destes ratios (61%), ele é superior à taxa média de mortes de civis em todos os conflitos mundiais desde a Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1990. O número de baixas é superior ao de qualquer guerra na história recente de Gaza e a Al Jazeera afirmou que 2023 foi o ano mais mortífero para os palestinianos desde a Nakba de 1948.

É neste cenário de genocídio e sofrimento que têm surgido, diariamente, vídeos filmados e colocados online, nas suas contas das redes sociais, pelos próprios soldados israelitas que os protagonizam, oferecendo-nos um olhar e comportamento aparentemente dissonantes da realidade que retratam. Mostram-nos soldados:

– a competir na destruição de uma casa enquanto aplaudem e riem, sem qualquer razão válida para a destruição; a arrasar hospitais, casas e escolas palestinianas com explosões em directo, controladas, e a festejar ou gozar com a sua destruição; a dedicar uma explosão ao aniversário de uma filha de dois anos, segundos antes de fazer explodir um edifício residencial palestiniano atrás dele; a carregar munições para um tanque, vestidos com um fato de dinossauro, e a dançar enquanto o tanque dispara em direção a Gaza;

– a conduzir um bulldozer militar empurrando corpos de palestinianos mortos, ao som de uma música que diz: “Que enorme barulheira/É o camião do lixo/Vem levar o lixo sujo/Boom boom boom crash/Levantou o caixote do lixo sujo/E virou-o ao contrário/Todo o lixo entornado/Boom boom boom crash“; a conduzir pelos escombros de zonas residenciais de Gaza, mostrando os destroços enquanto reclama com sarcasmo pela “limpeza mal feita” e ordena a um companheiro que traga uma retroescavadora para limpar a área;

– a troçar de mulheres palestinianas obrigadas a fugir, enquanto vasculham pertences íntimos em suas casas, exibindo o interior de armários, mostrando lingerie, objectos pessoais e íntimos, e dizendo nos vídeos que as mulheres de gaza são as mais “porcas”; a mostrar-se em comportamentos degradantes vestidos com lingerie feminina pertencente a mulheres deslocadas ou mortas;

– a gozar com a falta de água (provocada por Israel), exibindo uma sanita e dejectos humanos e acusando os palestinianos de serem pouco higiénicos; a saquear bens privados de casas de famílias palestinianas; a colocar tapetes de oração muçulmanos em sanitas destruídas;

– a incendiar festivamente provisões alimentares e garrafas de água encontradas num armazém, num contexto de fome generalizada; a destruir alegremente uma loja de brinquedos, esmagando-os e decapitando-os; a troçar de crianças palestinianas enquanto pedalam nas suas bicicletas por entre escombros e ruínas;

– a troçar de prisioneiros civis palestinianos, semi-nus, vendados e amordaçados, obrigados a cantar “the sound of silence” com os soldados; ou obrigados a cantar canções infantis populares para os soldados dançarem; ou obrigados a dançar, amarrados, ao som de músicas religiosas judaicas, enquanto lhes perguntam “porque não consegues dançar?”;

– a dançar em atuações de cantores populares israelitas, cantando letras como “onde é que não há luz, comida e água?/gaza, gaza/onde é que se está a viver em tendas?/gaza, gaza”; a cantar slogans racistas enquanto dançam em círculo, de braços dados;

– a gabar-se de assassinar “com 4 tiros” um palestiniano desarmado, idoso e surdo, que implorava pela sua vida, numa rusga a uma casa na cidade de Gaza, com os colegas a elogiarem-no ruidosamente pelo feito, dizendo “todo o respeito!”; a gabar-se sobre o uso da tortura, mostrando aos outros o corpo de prisioneiros torturados por si.

É possível ver alguns destes vídeos como um mecanismo de sobrevivência usando o humor como meio de defesa psicológica ou para aliviar o stress e manter o moral perante a adversidade da guerra. No entanto, a quantidade, a frequência da sua colocação online, a similitude dos comportamentos e objectos usados, a abordagem jocosa ou sarcástica, a atitude de desafio ou provocação permitem considerá-los como reflexo de um fenómeno social mais vasto.

Ou seja, por muito chocantes, perversos ou cruéis que nos possam parecer, estes vídeos limitam-se a ser a expressão moderna, que a tecnologia coloca à vista de todos, na palma das nossas mãos, a qualquer hora do dia e da noite, de comportamentos corporizando o colonialismo de colonos e o regime de apartheid da ocupação e opressão israelitas, marcados profundamente por supremacismo étnico, racismo violento e desumanização dos palestinianos.

De facto, a desumanização dos palestinianos tem desempenhado um papel central na ocupação israelita da Palestina, ao longo de décadas de violência, limpeza étnica e sofrimento humano. Entendida como a negação da humanidade fundamental e da dignidade a indivíduos ou grupos, a desumanização tem funcionado como uma poderosa ferramenta de dominação e controlo, permitindo aos perpetradores justificar actos de violência e discriminação. A desumanização dos palestinianos por parte de Israel não é apenas um subproduto de mera hostilidade intergrupal ou diferença cultural, mas sim uma estratégia deliberada para legitimar a colonização e a ocupação de terras palestinianas através de métodos violentos.

O colonialismo de colonos, no cerne da criação e expansão de Israel como Estado-nação, tem como elementos centrais o apagamento da identidade palestiniana e a apropriação de terras palestinianas, conduzindo à marginalização e exclusão dos palestinianos enquanto sujeitos políticos com direitos iguais e seres humanos com dignidade igual à dos colonos israelitas. Para além disto, este colonialismo baseia-se na violência e na coerção sancionadas pelo Estado para manter o controlo sobre as populações colonizadas e suprimir a resistência à colonização e à expropriação. A desumanização dos palestinianos por parte de Israel serve para justificar e perpetuar esta violência, ao mesmo tempo que impede a construção de empatia e solidariedade entre os israelitas e palestinianos.

Por outro lado, o legado de traumas históricos, com saliência para o Holocausto e décadas de guerra com os Estados árabes vizinhos, moldou a memória colectiva e a identidade israelitas. O ethos do “nunca mais” permeia a sociedade israelita, fomentando uma mentalidade de cerco e uma propensão para a violência preventiva como meio de auto-defesa. A identificação com as vítimas do Holocausto constitui uma intenção explicita da política educativa. Todos os israelitas devem ver-se como sobreviventes do holocausto ou como potenciais futuras vítimas de outro holocausto. Instrumentalizando o trauma, o objectivo é educar para a vingança, direcionada para os palestinianos colonizados, que eram e são o inimigo necessário aniquilar para o Estado de Israel poder existir e os judeus “nunca mais” serem vítimas. Este medo de um futuro Holocausto é usado para justificar a violência do estado sionista, mostrando a sua necessidade para defender o povo judeu e garantir que outro holocausto “nunca mais”.

A desumanização dos palestinianos é operada nas mais diversas áreas e através de um vasto conjunto de meios, sendo uma das mais importantes o apagamento da história, cultura e identidade palestinianas da memória colectiva e da narrativa do Estado israelita, feito sobretudo através do sistema educativo: a título de exemplo, os manuais escolares mostram os palestinianos como antigos agricultores, refugiados ou terroristas de caras pintadas e tapadas, não se encontrando uma única imagem de uma pessoa palestiniana comum.

Após 12 anos num sistema educativo que os ensina a desumanizar os palestinianos e pensar neles como indivíduos malignos que querem matar judeus e não como um povo oprimido, colonizado, lutando por liberdade, a maior parte dos israelitas é incorporada nas FDI (Forças de Defesa de Israel) para 2 a 3 anos de serviço militar obrigatório, constituindo a linha da frente do apartheid e da ocupação. A existência de Israel enquanto estado judeu depende do controlo da demografia de modo a manter uma maioria judaica, recorrendo para isso às deslocações forçadas, ao confinamento e ao assassínio de palestinianos de forma rotineira. Uma das formas de conseguir a adesão dos judeus a esta política é convencendo-os de que só ela possibilita viver de um modo seguro. Ver os palestinianos como seres humanos, que querem viver em paz e livres é contraproducente.

Esta prática desumanizadora incorporada é ainda reforçada por dois outros aspectos: o discurso oficial dos dirigentes e a cultura de impunidade.

No final de outubro passado, Netanyahu utilizou uma referência do Antigo Testamento para orientar o comportamento dos soldados israelitas na guerra contra o Hamas e na invasão de Gaza: “Ataquem os Amaleques. (…) Matem homens e mulheres, crianças e bebés, gado e ovelhas, camelos e burros“. A intenção genocida é clara: destruir toda a população de Gaza e não apenas o Hamas. Embora não se referindo aos palestinianos como animais, esta instrução aponta para que tudo, pessoas e animais, deva ser objecto do mesmo tratamento – a eliminação -, sem distinção entre humanos e não-humanos, contribuindo para reforçar a desumanização dos palestinianos e gerar permissividade em torno dos danos infligidos, fossem eles quais fossem. O tratamento do inimigo como animal, como ser não-humano, não é novo: os hutus, a etnia no poder no Ruanda nos anos 90, apelidavam os tutsis de baratas e, no Camboja, os Khmers Vermelhos referiam-se aos seus próprios cidadãos como “vermes” e “parasitas”. Na Europa a propaganda nazi retratou o povo judeu como ratos cheios de doenças, chegando mesmo a referir-se aos judeus como “Untermenschen”, ou seja, sub-humanos. O discurso do actual ministro da Defesa, Yoav Gallant, em outubro passado, designando os habitantes de Gaza como “animais humanos” é descendente em linha directa dos exemplos anteriores. E um outro discurso de Netanyahu caracterizando a invasão de Gaza como uma “luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, entre a humanidade e a lei da selva” faz a síntese entre a lógica colonial e a lógica desumanizadora, utilizando uma linguagem impregnada de sentido colonizador e islamofóbico, onde os palestinianos são retratados como bárbaros, sem civilização ou cultura e, portanto, não merecedores de consideração como humanos.

No que respeita à cultura de impunidade, é por demais conhecido que o projeto colonial sionista na Palestina beneficiou de décadas de impunidade, não só para o regime israelita, mas também para os indivíduos israelitas culpados de crimes de guerra. As inúmeras Resoluções das Nações Unidas nunca foram cumpridas e Israel nunca sofreu qualquer tipo de sanção por isso, nem pela sistemática violação dos direitos humanos dos palestinianos nos territórios ocupados, nem ainda pelos crimes de guerra cometidos em anteriores massacres de palestinianos, libaneses ou sírios. A realidade é que, ao longo das últimas sete décadas e meia, tem havido total impunidade para com a brutalização e massacre de palestinianos por parte de Israel. O genocídio em curso em Gaza e a forma como está a ser tão descaradamente partilhado nas redes sociais pelos soldados perpetradores é uma manifestação dessa impunidade.

Neste contexto, a publicação de vídeos jocosos por soldados israelitas pode ser vista como uma manifestação da lógica desumanizadora do colonialismo de colonos. Ao transmitirem e exibirem o prazer na violência com uma indiferença insensível ao sofrimento e destruição infligidos, os soldados israelitas partilham connosco o seu desejo de continuar a dominar as casas (as vidas), agora vazias, dos palestinianos deslocados e possivelmente mortos. Violando o seu mundo privado e expondo-o com alegria, mostram quem é o “senhor colonial”, que tudo pode. A desumanização dos palestinianos nestes vídeos reflecte um padrão mais amplo de racismo e xenofobia que impregna a sociedade israelita, reforçando estereótipos e preconceitos que justificam a subjugação do povo palestiniano. Por outro lado, a publicação de vídeos que constituem uma assunção da realização de crimes de guerra reflecte uma cultura de impunidade que dá prioridade total aos interesses do grupo dominante.

Curiosamente, os vídeos colocados pelos soldados israelitas desumanizando os palestinianos, e que são eles próprios reflexo de uma cultura incentivadora da desumanização, são também um canal que mostra ao mundo a desumanidade dos soldados e da sociedade israelita. Não se pode desumanizar o outro sem se desumanizar a si próprio. É essa a armadilha da desumanização.

Humilhados, detidos, torturados, banidos, despidos de roupa e de direitos, privados de água e de comida, explodidos em milhares de bocados – a brutalização de corpos muçulmanos tornou-se banal. Só desafiando as estruturas de poder enraizadas e desmantelando os sistemas de opressão – ou seja, só terminando com a ocupação israelita e criando um Estado Palestiniano soberano – se pode esperar construir um futuro baseado no respeito mútuo, na dignidade e na igualdade. Pôr fim imediato ao actual genocídio e responsabilizar perpetradores e cúmplices é uma condição indispensável.