Agressões a migrantes no Porto:“condenável, mas”…

1. O debate sobre o crescimento da extrema-direita e sobre ataques racistas é sobre isto: milícias criminosas e racismo. O que aconteceu no Porto no início de Maio foi um crime. O primeiro suspeito detido pela polícia confessou às autoridades a motivação racista desse crime e acrescentou que terá estado envolvido em mais situações do mesmo tipo contra cidadãos magrebinos nas últimas semanas. Sabemos portanto que pelo menos um dos criminosos tem ligações ao grupo neonazi de Mário Machado, em cujas redes sociais se celebrou as agressões.


2. O ataque no Porto tem responsáveis criminais e responsáveis políticos. Quem são? São aqueles que no espaço público associam imigração e criminalidade, o que é objetivamente falso e visa cavalgar um sentimento subjetivo, canalizando-o para uma desconfiança sobre os imigrantes, como fez Passos Coelho. É quem incentiva o preconceito contra os imigrantes e o leva para a esfera institucional, como André Ventura, cuja reação à atuação da milícia foi desculpar o crime, procurando “enquadrá-lo” com uma suposta “indignação popular”. Ora, o que motivou o crime não foi a “indignação popular” nem a “insegurança da população”, porque a população que tem problemas chama a polícia e bate à porta das autoridades, não convoca neonazis. A motivação do crime foi o racismo e a ideia de que se pode espancar imigrantes e obter aplausos. Ventura quis integrar estes criminosos na sua órbita política.


3. Rui Moreira também esteve muito mal. Criticou o ataque e opôs-se a qualquer ato racista e xenófobo, o que é evidentemente de louvar. Mas depois não resistiu a desviar a discussão para o debate em torno da suposta “imigração descontrolada” e, mais grave, sugeriu a extinção da Agência para a Integração, Migrações e Asilo. É preciso lembrar que esta agência substituiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras na sequência do debate provocado pelo homicídio de um imigrante às mãos dos inspetores do SEF, serviço que deixou como legado 400 mil pendências e dezenas de milhares de imigrantes desesperados por não terem atendimento, nem possibilidade de obter as suas autorizações de residência (muitos dos quais há meses a descontar para a Segurança Social)? Regressar ao SEF que tínhamos seria um desastre absoluto.


4. Rui Moreira tem também responsabilidades na legitimação da extrema-direita, por ter permitido uma manifestação neonazi no Porto, em abril, que deveria ter sido proibida, em nome da Constituição. E é responsável pela inação no outro tema que quis debater: apesar de ter sido proposto na autarquia, a Câmara não adotou nenhum Plano de Integração das pessoas migrantes que residem na cidade, não tem ajudado a resolver o problema da habitação que afeta trabalhadores portugueses e estrangeiros e adiou a criação de um Conselho Municipal para a Migração, que foi aprovado em 2021 e ainda não existe.


5. É preciso contrariar até à exaustão uma mentira e uma ideia falsa: não há nenhuma relação entre criminalidade e imigração. Entre 2017 e 2022, dizem os Relatórios Anuais de Segurança Interna, a criminalidade geral e a criminalidade violenta baixaram. Nesse mesmo período, o número de estrangeiros residentes em Portugal quase duplicou, de cerca de 400 mil para 780 mil pessoas. Se há problemas de criminalidade eles têm de ser resolvidos. Com políticas económicas e sociais para atacar as suas causas. Com intervenção das forças de segurança, para lidar com as suas ocorrências. Não é a imigração que os causa: há muito mais portugueses a cometer crimes do que estrangeiros. Os problemas de insegurança no Porto não explicam, não justificam e muito menos legitimam a criminalidade neofascista. Esta é, pelo contrário, um fator de agravamento da insegurança pública.


6. Há uma franja no nosso país que hoje se sente legitimada para exercer a sua violência verbal e física, porque encontra respaldo em discursos públicos e institucionais. Essa violência combate-se com todo o vigor: com ação política, com educação, com a polícia quando for o caso. Quando se fala em reparação histórica, eis porventura a mais urgente: garantir a todos os que aqui vivem as condições de se sentirem seguros, combater a herança da visão colonial do mundo, construir justiça social contra o racismo e a desigualdade que dá a imigrantes e afrodescendentes menos oportunidades, que os empurra para vias curriculares desvalorizadas, que os remete para territórios periféricos e empregos sem reconhecimento nem valorização, que lhes nega direitos humanos elementares. Combatam-se ainda as narrativas e as sugestões xenófobas no discurso mediático, na abordagem noticiosa, nos debates promovidos e na linguagem política. É que há palavras e associações que são gatilhos para a violência.

7. A imigração é um bem e uma necessidade. Tem de ser acompanhada por políticas que garantam mais habitação acessível para todas as pessoas, fiscalização rigorosa contra a exploração laboral, integração de trabalhadores de todas as proveniências na lei do trabalho e na contratação coletiva, maior representação dos imigrantes nos sindicatos e nas instituições políticas, medidas de acesso à língua, emissão expedita de títulos de residência e mecanismos permanentes de regularização. Muito disto está por fazer. Eis um desafio central para quem quer, 50 anos depois, defender a democracia contra a mentira.

Publicado no Jornal Expresso a 8 de Maio 2024