O futuro da educação escolar e as crianças

Uma corrente na prospetiva educacional vaticina que o futuro da educação não terá escolas[i]. Ainda que esta corrente seja minoritária no campo das Ciências da Educação, ela traduz uma tendência que tem vindo a ser progressivamente afirmada pelo pensamento neo-liberal. A emergência e desenvolvimento crescente do ensino doméstico, sobretudo nos Estados Unidos da América; as profecias disfóricas acerca da morte do pensamento crítico e da criatividade humana pelo domínio da Inteligência Artificial; o declínio das instituições da modernidade – O Estado-Nação, a democracia liberal, a justiça, as instituições escolares – e a prevalência da “sociedade do mercado”; a substituição  da relação pedagógica face-a-face pela virtualização da transmissão de conhecimentos – tudo isto concorre para esta visão decetiva do futuro das escolas como instituições públicas, reguladas pelo Estado, de comunicação de saberes e de cultura às novas gerações. O império do mercado, nomeadamente das empresas de conteúdos digitais, anuncia-se como alternativa. Tudo isto em perfeita sintonia com uma radicalização do processo moderno de individualização. A “socialização para o individualismo” (Beck & Beck-Gersheim, 2003)[ii] encontra o seu ponto paroxístico na visão de uma sociedade em que as crianças são entregues a si próprias em processos auto-educativos, sustentados em plataformas digitais, com suporte parental e o recurso às empresas de serviços que oferecem no seu menu atividades de lazer, artísticas, desportivas e outras. A desigualdade e a estratificação social têm campo aberto de renovação e crescimento.

É certo, que a escola, na sociedade capitalista, sempre se deu bem com a desigualdade e a estratificação social. Não obstante, nos “corredores de liberdade” que a autonomia institucional relativa potencia, ao longo dos dois séculos e meio de escola pública, foi possível afirmar a potencialidade de uma educação alternativa, onde as crianças se encontram entre si e com a cultura, no seio da qual desenvolvem o seu pensamento criativo e crítico, se abrem para a diferença e se constituem como cidadãos ativos na construção esperançosa de um mundo justo e igualitário.

É esta potencialidade da escola como bem público, onde a aprendizagem se cruza com a capacidade de construir entre pares uma consciência crítica do mundo, que, nas circunstâncias atuais, importa pensar o futuro da educação escolar, como resistência e como projeto de esperança[iii]. 

Este projeto só faz sentido, todavia, se a transformação da escola se constituir como uma pedra angular na construção de um outro mundo possível. A escola do futuro sê-lo-á se constituir um espaço público interclassista, onde seja possível a partilha de saberes e culturas, onde se universalize o acesso à ciência e ao conhecimento, onde se desarmadilhe a fraude da meritocracia, mas onde também convivam, se respeitem e intercetem saberes de diferentes povos e etnias. A escola do futuro assume-se claramente como uma escola de valores e por isso propõe-se desmontar as ideologias e os preconceitos racistas, xenófobos, homofóbicos, patriarcais, paternalistas, sexistas, familialistas, idadistas, discriminatórios por aspeto físico ou em razão de deficiência.  A escola do futuro é uma escola não violenta, assente numa ética de cuidado e competente no acolhimento e no respeito dos ritmos de cada um. A escola do futuro é também a escola da participação infantil, onde a voz das crianças é escutada e acolhida e onde o ambiente democrático favorece a livre expressão das ideias e promove os consensos na decisão. A escola do futuro é, finalmente, a escola de uma profissionalidade docente, onde os professores são reconhecidos na sua  autonomia e dignidade profissional e onde se sentem realizados pessoalmente no processo humanizador na educação dos mais novos.

Uma escola assim implica uma renovação pedagógica e uma transformação do modelo organizacional. A renovação pedagógica supõe o reencontro com as correntes pedagógicas (de Dewey, Montessori, Freinet, Rogers, Freire, etc.) que, sendo hegemónicas no discurso educacional, sempre se manifestaram como minoria nos quotidianos escolares. Os contributos da pedagogia crítica são determinantes numa conceção emancipatória da relação pedagógica[iv]. O modelo organizacional deve poder incorporar no ato educativo a abertura da escola ao convívio com a cidade e com a vida, com os museus, os parques, as bibliotecas, as galerias de arte e os recursos educacionais não formais disponíveis; deve ser flexível e fazer do projeto criativo a condição de um conhecimento que se apreende melhor porque é transformador; deve incorporar as tecnologias digitais, instrumentalizando-as na potenciação da construção de saberes que se adquirem presencialmente na interação de pares e dos alunos com os professores.

 A escola do futuro é essa construção presente de um projeto de cidadania social, cognitiva e cultural das crianças e dos jovens.    


[i] Cf. OECD (2020), Back to the Future of Education: Four OECD Scenarios for Schooling, Educational Research and Innovation, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/178ef527-en..

[ii] Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth (2003). La Individualizacion. El individualismo institucionalizado y sus consecuências sociales y políticas. Baercelona. Paidós (trad. cast.)

[iii] Apesar de algumas ambiguidades (não será a menor delas a defesa consensualista de “um novo contrato social para a educação), o relatório da UNESCO sobre o futuro da educação (conhecido como relatório Nóvoa) afirma o projeto igualitário da educação escolar e afirma a escola como bem-público. UNESCO (2022). Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação. Paris. UNESCO: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000381115

[iv] Cf. Klees, Steven J (2020). Beyond neoliberalism: Reflections on capitalism and education. Policy Futures in Education, Vol. 18(1) 9–29