França: tanta esperança a andar à solta

1. No momento em que acabo este artigo, mais de um mês após a segunda volta das eleições legislativas em França (realizada a 7 de Julho), o presidente Macron continua a recusar-se a nomear a primeira-ministra escolhida pela Nova Frente Popular (NFP), sob o pretexto que “não houve um vencedor claro” nessas eleições. Tendo a NFP um total de 193 deputados, contra 166 da coligação presidencial (99 de Ensemble e 67 de outros aliados de direita) e 126 da União Nacional (Rassemblement National – RN) de Marine Le Pen/Bardella, num total de 577 mandatos, é difícil entender porque se mantém em funções um governo que foi derrotado nas legislativas após ter saído também derrotado nas eleições para o Parlamento Europeu a 9 de Junho. Além do mais, Macron está a recusar um critério que foi sempre seguido (a prerrogativa de formar governo cabe à força política mais representada) e que aplicou a si próprio em 2022 quando só alcançou 172 deputados (ou 250 se considerarmos as alianças com os Democratas e outras forças), bem longe dos 289 que lhe teriam dado a maioria absoluta. E foi mesmo essa maioria relativa que governou até 9 de Junho, dia das eleições europeias. 

2. O resultado das eleições europeias foi um verdadeiro terramoto. Numa eleição em que, pela primeira vez, houve um só círculo nacional para eleger 81 eurodeputados, o RN ficou em 1º lugar (31,37% dos votos, 22,37% em 2019) e 30 deputados (23 em 2019), e a coligação presidencial teve apenas 14,6%, (contra 22,4% em 2019) tendo eleito 13 deputados (23 de 2019). Em terceiro lugar ficou a lista da área do PS (Despertar a Europa) que recuperou relativamente a 2019 (13,8%, 13 eleitos – mais 7,6% e mais 7 eleitos), seguido da LFI que obteve 9,89% (vs. 6,38 em 2019) e 9 eleitos (vs. 6 em 2019). A lista ecologista, que tinha obtido 13,5% em 2019, caiu para 5,5%, tendo perdido 8 dos 13 eleitos. Além disso, o Partido Comunista Francês (PCF) não conseguiu eleger nenhum eurodeputado, o que aconteceu pela primeira vez desde que há eleições para o PE. 

3. Na noite de 9 de Junho, numa decisão inesperada, Macron anunciou a convocação de eleições legislativas antecipadas para 30 de junho (1ª volta) e 7 de julho (2ª volta). Apesar do seu mau resultado, o presidente francês optou por uma fuga em frente. Certamente fantasiou reeditar os duelos de 2017 e em 2022, em que a 2ª volta das presidenciais foi disputada entre ele e Marine Le Pen, e de que saiu vitorioso. Apostou (erradamente) que a esquerda se apresentaria dividida e que as legislativas seriam uma autoestrada para a confirmação de um novo mandato do seu campo político e também para o afirmar como a única alternativa credível a Marine Le Pen, ganhando também desse modo um certo élan para as presidenciais de 2027. Mas enganou-se redondamente e arriscou-se a que França viesse a ser governada pela extrema-direita. 

4. Num tempo recorde, sob proposta de La France Insoumise (LFI), constituiu-se uma coligação eleitoral de esquerda (a Nova Frente Popular) que incluiu a LFI, o PS, os Ecologistas, o PCF, e também o NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste) e outras formações. Uniram-se em torno de um programa com medidas imediatas e urgentes para o primeiro dia de governo, como a revogação da reforma aos 64 anos – imposta por Macron sem votação na Assembleia Nacional (AN) – o aumento do salário mínimo e o congelamento dos preços da energia. Esse programa imediato foi combinado com medidas de fundo, que constituem um programa de oposição à governação de Macron e de clara rutura com o rumo  neoliberal. De entre essas medidas, gostaria de destacam-se, pela sua importância, o reconhecimento do Estado da Palestina, o apoio ao cessar-fogo imediato, as sanções contra o governo de Netanyahu, o embargo à venda de armas a Israel e o apoio às decisões do TIJ.

A coligação apresentou candidaturas em todos círculos eleitorais.  A campanha eleitoral foi extraordinária em mobilização e soube combinar o intenso trabalho nas redes sociais com as velhas tradições do porta-à-porta, das distribuições nas fábricas, mercados, ruas, no contacto direto e intenso com a população. Mobilizou muita gente, bem para além das bases militantes dos partidos integrantes da NFP. Além de muitos sindicalistas e ativistas de movimentos sociais, juntaram-se muitas pessoas que já há muito não militavam e outras para quem esta campanha foi a primeira experiência de ativismo político, gente que parecia “longe da política”, jovens e  migrantes. Com todas as diferenças históricas e políticas, não é exagerado dizer que a herança das memoráveis mobilizações da Frente Popular de 1936 passou por ali.

5. No que diz respeito às eleições legislativas, a França tem um sistema muito complicado de votação: há 577 círculos eleitorais uninominais; é eleito à primeira volta quem tiver mais de 50% dos votos expressos, se corresponder a 25% dos eleitores inscritos – caso contrário, passam à segunda volta todos os candidatos que tenham recebido os votos de pelo menos 12,5% dos eleitores inscritos e ganhará a candidatura mais votada.

Na primeira volta (a 30 de Junho), foram eleitos 37 deputados do RN, 32 da NFP e apenas 2 da maioria presidencial e 1 dos republicanos, o que nos dá a dimensão do que só ficou decidido na segunda volta, que foi portanto fortemente disputada. Nessa noite, analisando os resultados, Mélenchon constatou a segunda derrota de Macron e lançou um desafio: o RN não poderia ganhar, por isso era imprescindível haver uma concentração de “votos republicanos” que constituíssem uma barragem à extrema-direita. E deixou claro, claríssimo, que nos círculos em que a NFP ficou em 3º lugar e havia o perigo de o RN poder ganhar, a NFP retiraria a sua candidatura de forma a concentrar votos contra a extrema-direita. Embora Macron e Attal tivessem declarado o mesmo, na verdade multiplicaram-se as declarações de dirigentes e ex-ministros (por exemplo, a ex-presidente da AN dissolvida), em como essa consigna não seria válida se a força mais bem posicionada da NFP fosse a LFI. A diabolização da LFI, presente nestes anos de governação e fortíssima durante a campanha europeia, continuou nas legislativas. Estudos realizados sobre a 2ª volta mostram que em círculos em que a disputa era entre a NFP/LFI e o RN, apenas 43% dos eleitores do Ensemble na 1ª volta votaram na 2ª volta no candidato da NFP, enquanto  que nos casos de disputa entre o Ensemble e a RN, 72% dos eleitores da NFP votaram na candidatura do Ensemble. Mesmo assim, a LFI teve 72 eleitos, o PS 66, os Ecologistas 38 e o PCF 17. 

6. Na noite de 7 de Julho, a imensa surpresa, foi o facto de a NFP ficar em 1º lugar … e o RN ter sido relegado para o 3º. Com uma afluência às urnas que foi a maior dos últimos 22 anos, a NFP não só ficou em primeiro em número de deputados, como obteve votações impressionantes (acima dos 50%) em várias das maiores cidades/áreas metropolitanas. As manifestações de alegria por toda a França (e um pouco por todo o mundo) só são comparáveis em intensidade às expressões de raiva e deceção nos rostos e corpos dos dirigentes e militantes da extrema-direita. Creio não ser injusto dizer-se que, à exceção de Mélenchon e outros dirigentes da LFI (que tinham afirmado com entusiasmo em ao longo da campanha que a vitória da NFP estava ao alcance), as outras componentes da NFP não esperavam este resultado. Até as suas conferências de imprensa foram separadas, e para públicos separados. No entanto, nessa noite histórica acabaram por afinar pelo mesmo diapasão: Macron fora inequivocamente derrotado e caberia à NFP formar governo com base no seu programa. Não foi fácil, contudo, chegar a uma proposta de consenso quanto ao nome a apresentar a Macron para chefiar o novo governo. A proposta de Lucie Castets só chegou a 23 de julho … e entretanto tinham-se passado mais de 2 semanas. 

Esta dificuldade não releva só de uma luta de egos, como se tem tentado insinuar de forma simplista. Na realidade, mesmo que todas as componentes afirmem que o importante é o programa da NFP, há visões diferentes quanto ao perfil e também sobre as relação a ter com a “macronia”.  

7. Há uma certeza: não é possível voltar a haver eleições nos próximos 12 meses! Por isso Macron só tem duas soluções: nomear Lucie Castets como primeira-ministra, ou dar um golpe de morte na vontade popular e na democracia representativa, ao tentar manter os seus ministros a governar. O “segredo” da vitória da NFP foi a mobilização popular. Só a sua continuação e a sua intensificação poderão derrotar os projetos bonapartistas de Macron e abrir a via para um governo que terá de infligir derrotas à política neoliberal, não apenas recuperando direitos perdidos, como avançando na conquista de novos. Precisamos que a esperança continue a andar à solta.