Uma Coligação que fez acontecer e deu que falar

As eleições autárquicas de dezembro de 1989 aconteceram num tempo político muito diferente do atual. Em Lisboa, havia dez anos que uma coligação CDS/PSD liderava o Município e maltratava a Cidade. O presidente de Câmara, Kruz Abecassis, do CDS, era o apoderado de todos os empreiteiros que construíam praticamente a bel-prazer. Convém recordar alguns dos seus pontos altos. Abecassis tentou, sem sucesso, devido à oposição popular, fazer uma feira popular em frente aos Jerónimos. Destacou-se ainda por tentar impedir a exibição do filme de Godard “Je vous salue Marie”, tido como herético, porque expunha a nudez da Virgem. O CDS dirigia essa coligação, Aliança Democrática (AD), porque em 1976 teve mais votos no concelho do que o PPD/PSD e depois encabeçou sucessivas coligações. Também o PCP/ PEV (CDU) tinha mais votos em Lisboa para as autarquias do que o PS. Jorge Sampaio era o líder do PS, no auge do consulado de Cavaco Silva como primeiro-ministro, e surpreendeu tudo e todos quando anunciou uma candidatura à CML, fazendo simultaneamente um apelo à unidade da esquerda para derrotar a gestão Abecassis. A Coligação Por Lisboa é depois montada com a participação de PS, PCP, MDP, PEV, UDP e PSR. Dez anos de desmandos em Lisboa, a que se juntava um sentimento de que depois do 25 de Abril estavam por concretizar ali muitos princípios democráticos, foram a ignição duma aventura política sem precedentes.

A campanha eleitoral é inesquecível por vários acontecimentos, polémicas e atitudes.

Desde logo, a campanha é atravessada pela queda do Muro de Berlim, com as reações desencontradas dos parceiros, o choro do PCP, e uma enorme politização do quadro eleitoral. Havia uma sessão numa coletividade de bairro nessa noite e ficou toda a gente a olhar para as imagens de Berlim na RTP, única TV à época. 

 Sampaio, e Lopes Cardoso que o acompanhou sempre nesta junção de forças, incentivaram um longo processo aberto de elaboração do programa eleitoral. Centenas de pessoas, para além dos partidos, foram ouvidas e lidos os seus textos e propostas nas mais variadas perspetivas de fazer Cidade comunitária e inclusiva. Ainda hoje, a abordagem dessa visão da Cidade tem pontos de extrema atualidade apesar dos trinta e cinco anos transcorridos. Lembro José Augusto França, que serziu partes desse programa, discursando lado a lado com José Saramago, num Terreiro do Paço ainda parque de estacionamento automóvel à superfície, para explicar o primeiro mandamento de um município progressista: “o mais importante não é o que se faz, mas o que não se deixa fazer em nome dos cidadãos”. Esse processo e o ineditismo da coligação transbordaram muitos apoios e um entusiasmo patente em ações de rua e comícios. Muitas pessoas acharam piada a um slogan que dizia pouco em si como “o patriotismo de cidade” mas que se destinava a superar rivalidades de bairros.

A campanha teve, como era esperado, um forte ataque da direita e de Cavaco, sempre à roda da acusação de regresso ao PREC de 1975. A coisa não tinha sequer aproximação à realidade, mas a toada foi anticomunista e anti esquerdista. Veja-se que ao invés do que a direita dizia as propostas mais radicais sobre solo urbano, ou sobre casas devolutas, não foram aceites pela dupla PS/PCP. A candidatura marcou a sério, apesar de alguma retórica de pôr Lisboa no mapa das capitais atlânticas da Europa, pela garantia do fim da arbitrariedade e compadrio na gestão urbanística. Vieram dessa campanha os planos de pormenor e planos de salvaguarda de zonas sensíveis da cidade ainda antes de haver plano diretor municipal. A transparência teve algum tempo para luzir, embora não tenha perdurado para gestões seguintes. Arrancou o impulso para a erradicação dos bairros de barracas e o alargamento de medidas sociais sobretudo nas escolas do básico e jardins de infância. A cultura em Lisboa passou a ser valorizada, da tradicional à mais erudita. Nem queiram acreditar no que era o vazio cultural anterior. Mesmo as simples Marchas Populares estavam interrompidas. Sampaio consegue marcar avanços nesta dimensão quando Lisboa é capital europeia da Cultura em 94. Miguel Portas, mais tarde eurodeputado do Bloco de Esquerda, teve aqui um trabalho de colaboração direta com Sampaio. Algumas medidas ingénuas como realizar hastas públicas para vender terrenos camarários para baixar o preço do solo também vieram dessa campanha.

Essa vitória em Lisboa não teve efeito imediato no consulado de Cavaco, a que vulgarmente chamamos “estado laranja”. Cavaco repetiria a maioria absoluta, logo no ano seguinte, mas a Coligação Por Lisboa, com toda a oposição, foi um polo de resistência e desgaste do PSD nacional até 95, quando foi apeado do poder. E certamente ajudou Sampaio a derrotar Cavaco nas eleições presidenciais seguintes.

Nesta operação, foi crucial o espaço livre de intervenção a todos e a cada um dos partidos integrantes da coligação. A principal crítica que se pode fazer a este processo político foi a de, apesar de ter vagamente falado da gentrificação, não ter antecipado a formidável dimensão do fenómeno. Quaisquer propostas que surjam agora para o município de Lisboa só podem começar a partir daí.