A banalização do genocídio. Os casos de Gaza e do Sudão

Nos anos que se seguiram ao Holocausto – o genocídio emblemático, a pior expressão do mal -Hannah Arendt criou a expressão “a banalidade do mal” para descrever a forma como as pessoas comuns podiam cometer atrocidades simplesmente por se conformarem com as normas sistémicas e seguirem ordens. Hoje parece estar a ocorrer um fenómeno paralelo: a banalização do próprio genocídio. O genocídio é cada vez mais tratado como uma ocorrência quase vulgar na política global, aceite, ignorada ou desvalorizada deliberadamente pela comunidade internacional. A palavra “genocídio” designa o extermínio deliberado de um grupo com base na sua etnia, religião ou nacionalidade, mas evoca também uma calamidade moral que ameaça os próprios fundamentos da civilização e humanidade. No rescaldo do Holocausto, o mundo declarou “nunca mais”. No entanto, na segunda metade do século XX e no século XXI, esta promessa parece cada vez mais vazia, uma vez que o espetro do genocídio não só persistiu como, em muitos aspectos, se tornou banal.

2. Gaza – o genocídio aos olhos de todos

O actual genocídio cometido por Israel em Gaza – e que parece poder alargar-se à Cisjordânia – decorre com maior intensidade desde 7 de outubro de 2023, em retaliação a um ataque realizado pelo Hamas do qual resultou a morte de 1200 israelitas, não se sabendo quantos foram mortos pelo Hamas e quantos o foram pelo exército israelita.

A dimensão deste genocídio é mais conhecida do que a do Darfur. De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, entre 7 de outubro de 2023 e 10 de Setembro de 2024 foram mortos pelo menos 41.020 palestinianos na Faixa de Gaza. Acrescente-se ainda uma estimativa de mais 10.000 mortos que estarão debaixo dos escombros ou não encontrados. Dos mortos identificados, 33% eram crianças, 18% mulheres, 9% idosos e 40% homens. Aplicando estas percentagens ao total de mortes, teremos mais de 13.500 crianças assassinadas até 10 de setembro. Outros 94.925 palestinianos ficaram feridos, entre os quais mais de 22.000 crianças.

Um estudo científico, publicado na Lancet em julho, usando critérios muito conservadores aponta para que mais de 186.000 mortes venham a ocorrer devido a esta carnificina praticada por Israel.

Em 11 de Setembro 90% da população de gaza (1,9 milhões) encontrava-se na situação de refugiado, e a ONU estima que mais de 2 milhões de pessoas (96% da população) sofram de carência alimentar ou estejam em situação de fome, incluindo 745.000 em nível de emergência e 495.000 em nível de catástrofe (o mais elevado). Estima-se que mais de 50.000 crianças necessitem de tratamento devido a subnutrição aguda e a UNICEF contabilizou em fevereiro mais de 17.000 crianças órfãs, desacompanhadas ou separadas dos pais.

3. Sudão – o genocídio escondido e esquecido

No Sudão, país com uma área e população exponencialmente maiores do que a Faixa de Gaza, teve início em 15 de abril de 2023 uma guerra civil entre as duas principais facções rivais do governo militar: as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e a milícia paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF). Nenhuma delas tem um objetivo ideológico ou uma identidade étnica monolítica. Ambas são comandadas por senhores da guerra sem escrúpulos que lutam pelo controlo do Estado e dos seus recursos. Ambos os lados bombardeiam civis, recrutam crianças e provocam a fome.

O genocídio é mais intenso na região do Darfur (com uma área semelhante a Espanha), onde a  RSF e os seus aliados locais conquistaram cidades e expulsaram os não-árabes. O principal alvo do genocídio são grupos étnicos não-árabes, especialmente o povo Masalit.

A ONU estima que até setembro deste ano terão sido mortas mais de 20.000 pessoas e outras 33.000 terão ficado feridas, e que em apenas 1 ano de guerra cerca de 25 milhões de pessoas – das quais 14 milhões são crianças – ficaram a precisar de assistência e apoio humanitário.

Desde o início do conflito mais de 8,6 milhões de pessoas, entre as quais estão 4 milhões de crianças, ficaram em situação de refugiados, procurando refúgio em outras regiões do Sudão (6,6 milhões) ou nos países vizinhos (1,8 milhões), o que torna o Sudão a maior crise de refugiados em todo o mundo.

Em termos de saúde, foram já diagnosticados mais de 11.000 casos suspeitos de cólera e outros surtos de doenças, cerca de 65% da população não tem acesso a cuidados de saúde e entre 70% e 80% dos hospitais nas zonas afectadas pelo conflito já não funcionam.

A fome atinge dimensões bíblicas. Mais de um terço da população total (17,7 milhões) enfrenta um nível de insegurança alimentar aguda (IPC3+) e destes cerca de 5 milhões estão à beira do nível emergência de carência alimentar. Prevê-se que mais de 700 000 crianças sofram de desnutrição aguda grave.

Em maio, o Instituto Clingendael, um think tank holandês, estimou que a fome e as doenças associadas matarão mais de 2 milhões de pessoas no Sudão até ao final deste ano e que, se a escassez de alimentos continuar, 6 a 10 milhões de pessoas poderão morrer de fome até 2027.

4. A banalização do genocídio – papel da mediatização

De entre os diversos mecanismos que intervêm na banalização do genocídio, impossíveis de abordar neste texto, escolheu-se explorar o papel dos mecanismos mediáticos que contribuem para tornar a violência genocida simultaneamente omnipresente e invisível ou desvalorizada.

Se a possibilidade de banalização do genocídio é real nos dois casos referidos também é verdade que se trata de situações com exposições mediáticas muito diferentes. No caso do Darfur, a invisibilidade é quase total. Na comunicação social mainstream a situação é pouco ou quase nada abordada, tendo até sido dada mais atenção às cheias e aos deslocados por elas provocados do que à guerra e genocídio em curso há quase ano e meio e aos milhões de deslocados dela resultantes. É uma invisibilidade que resulta de um silenciamento deliberado.

Em Gaza, a questão mediática tem operado de formas distintas, mais complexas e com resultados até conflituantes. A comunicação social mainstream decidiu desde o início disseminar a versão de Israel: o ataque do Hamas em 7 de Outubro foi uma acção de terror de fanáticos movidos por ódio étnico-religioso, que cometeram as maiores atrocidades; a resposta militar de Israel mais não era do que a natural reação de defesa face a esta barbárie. O discurso dos líderes políticos ocidentais, aliados de Israel, foi no mesmo sentido, reforçando-se mutuamente.

Por outro lado, ao nível da linguagem, existiu desde o primeiro momento a tentativa de apagamento do genocídio. Com destino ao grande público, os media recusavam-se a usar a palavra e questionavam a sua aplicabilidade. Os líderes políticos aliados seguiam a mesma cartilha. E, ao nível da legitimação deste apagamento, Israel tentava o mesmo nas instituições internacionais (Conselho de Segurança e AG da ONU, TIP, TIJ).

Esta intenção deliberada de silenciamento chegou ao ponto do New York Times ou da BBC terem definido instruções internas para a forma como noticiar a carnificina, com as palavras que deveriam ser usadas e as que seriam proibidas. Orwell diria guerra é paz.

Felizmente para o povo palestiniano, o universo mediático já não é apenas composto e controlado pela comunicação social mainstream, e o uso intensivo da internet e das redes sociais serviu como um contraponto que fornecia a toda a hora notícias, denúncias, apelos e imagens impedindo o apagamento pretendido. A opção da comunicação social e dos líderes políticos ocidentais foi, em parte, como tentar tapar o sol com uma peneira. Os buracos nos argumentos e na narrativa foram sendo progressivamente maiores face à realidade mostrada pelos números e pelas imagens dos pequenos vídeos pessoais (shorts) colocados no instagram, no tiktok, no twitter pela população de Gaza e que funcionaram como importantes instrumentos de luta dos subalternos para destruir a narrativa hegemónica dos agressores.

Curiosamente, a ONU e o dinheiro de alguns países árabes ajudaram este combate de resistência, ao terem proporcionado ao longo das últimas décadas o acesso à educação e um nível de literacia extremamente elevado na Faixa de Gaza, o que permitiu, em conjunto com o acesso a cobertura de internet, o uso intensivo dessas tecnologias. Caso tal não existisse, provavelmente saberíamos tão pouco como acerca do genocídio no Darfur, ou teríamos acesso apenas à versão de Israel.

No entanto, se a tecnologia “internet/redes sociais/vídeos” serve para revelar e comprovar o horror, a dimensão e a frequência dos ataques sofridos pelas vítimas, ela tem também o contraponto de poder causar a banalização do genocídio devido ao cansaço e habituação.

Por último, o uso da mesma tecnologia por parte dos agressores contribuiu para também eles banalizarem o próprio acto genocida, ao exibirem filmes nas suas contas pessoais onde tudo lhes era permitido, toda a destruição era colocada ao mesmo nível e com o mesmo grau de aceitabilidade. Esta banalização pelos agressores leva mais longe a “banalidade do mal” na acepção de Arendt: os agressores são pessoas normais, mas já não apenas obedecem a ordens como brincam com as suas próprias ações de desumanização, destruição e genocídio, humilham as vítimas e mostram-se orgulhosos dessa humilhação infligida.

5. O imperativo ético de resistir à banalização

A banalização do genocídio coloca um desafio ético em que a escala e a frequência das atrocidades as tornaram quase mundanas, em que a empatia e a indignação são enfraquecidas pela distância e repetição, e em que a justiça é limitada por cálculos geopolíticos e hierarquias de poder. Esta banalização não constitui apenas uma falha para com as suas vítimas directas como também mina o tecido das relações internacionais e as normas dos direitos humanos, do direito internacional humanitário e do direito da guerra. Para inverter esta tendência, é essencial repensar a forma como os genocídios são representados, discutidos e tratados.

Assim, é necessário resistir ao enquadramento dos genocídios como conflitos “inevitáveis” ou “intratáveis” e desafiar as narrativas que obscurecem as escolhas e acções deliberadas que conduzem à violência em massa. Em Gaza, isto significa reconhecer a assimetria de poder e de responsabilidade, reconhecer o bloqueio, a ocupação e a agressão indiscriminada como uma forma de punição colectiva que viola o direito internacional. No Darfur, significa continuar a exigir responsabilidade e justiça, mesmo quando o conflito é ensombrado por outros acontecimentos mundiais.

É também necessário um compromisso renovado com o empenhamento e a acção, que vá além das expressões superficiais de preocupação e passe ao apoio a movimentos sociais, à defesa de mudanças políticas ou à contribuição para os esforços humanitários. Significa também reconhecer a nossa cumplicidade nos sistemas de violência e opressão e trabalhar ativamente para os desmantelar.

É ainda necessário reformular os mecanismos jurídicos internacionais para garantir que a justiça seja uma realidade prática. Isto implica a reforma de instituições como o Conselho de Segurança da ONU, o TPI ou o TIJ, de modo a torná-las mais eficazes e menos vulneráveis a pressões políticas, bem como a responsabilização dos Estados poderosos pelas suas acções e pela sua cumplicidade.

Num mundo onde o genocídio se tornou banal, a tarefa para o reverter é imensa, mas não insuperável. Exige uma recusa colectiva em desviar o olhar e um compromisso de solidariedade para com aqueles que sofrem. A luta dos palestinianos de resistência e denúncia nas redes sociais, as manifestações de rua ou os acampamentos em universidades um pouco por todo o mundo em defesa do povo palestiniano e exigindo o fim da guerra são bons exemplos disso. Só recuperando a nossa capacidade de indignação e luta é que podemos esperar honrar a promessa do “nunca mais”.