“A aplicação não engana”

Nas últimas três décadas, observaram-se significativas transformações no panorama laboral em todo o planeta. O crescimento do setor de serviços, abrangendo áreas como as finanças, o turismo e a hotelaria, é evidente. A globalização intensificou as trocas comerciais entre países, fragmentou economias e gerou grandes transformações no mundo laboral. Avanços tecnológicos facilitaram a rápida circulação de conhecimento, aprimoraram cadeias de distribuição e deram origem a novas formas de emprego. Mudanças nas estratégias organizacionais incluíram o outsourcing de funções anteriormente sob responsabilidade direta das empresas, como a limpeza e a segurança. 

A tecnologia desempenha um papel fundamental para o surgimento de novas formas de emprego e contratação, permitindo a flexibilidade espácio-temporal e a monitorização autónoma da força de trabalho. Essa flexibilidade reflete-se na produção, com a automação, a descentralização das decisões e a maior participação dos trabalhadores na organização do trabalho. No entanto, também conduz à precarização dos trabalhadores menos qualificados, ao outsourcing para as regiões do globo mais “rentáveis” e para o aumento das pressões sociais em países em processo de desindustrialização e terciarização. Os avanços tecnológicos no campo do trabalho não procuram apenas aumentar a capacidade de produção, mas também o controlo sobre o próprio trabalho, contribuindo para o surgimento do capitalismo de vigilância e da economia de plataformas. A individualização trouxe também consigo um ataque pernicioso à luta do campo do trabalho, coletiva na sua raiz. A representatividade dos trabalhadores industriais nas economias ocidentais diminuiu, enquanto os sistemas de gestão de informações ganharam o controle nas complexas cadeias globais de produção. 

Uma economia baseada em bens intangíveis resultou na intensificação de processos como a financeirização e no controlo dos fluxos da distribuição e dos dados sobre o consumo e os consumidores. As empresas passaram de uma ênfase na venda de produtos para a prestação de serviços associados, incluindo a manipulação personalizada baseada na invasão da privacidade. A transição de nacional para global é evidente nos setores financeiros e na economia imaterial, introduzindo desafios relacionados à regulação económica e à relação entre estados e corporações.

Nesse cenário social, histórico e económico, surge o “capitalismo plataforma”. A economia de plataforma, representando um ramo estratégico do capitalismo global, apresenta um rápido crescimento. A emergência da economia de partilha desde 2008-2009 intensificou o debate sobre as plataformas de trabalho. Estas plataformas, como a Uber, a Bolt, a UpWork ou a TaskRabbit, transformam modelos corporativos convencionais ao reduzir custos, eliminar intermediários e possibilitar a competição em novos mercados.

O crescimento das empresas baseadas em plataformas foi impulsionado por investimento de capital de risco acumulado na febre do digital do início do milénio e possibilitada pelas inovações implementadas nas redes de abastecimento globais da chamada “revolução do retalho” aplicada por empresas como o Walmart e a Target. As plataformas aplicam esta tecnologia logística a áreas urbanas, apresentam-se através de atrativas aplicações e vendem uma narrativa empreendedora impregnada de ideias e lógicas de exploração antigas. Essas transformações têm implicações profundas nas relações de poder, distribuição de riqueza e dinâmicas laborais das sociedades contemporâneas.

As plataformas representam uma manifestação de uma tendência mais ampla, em que as empresas procuram externalizar riscos que eram tradicionalmente de sua responsabilidade. O trabalho temporário e a subcontratação são formas de comodificar o tempo de trabalho, retirando os trabalhadores dos sistemas de proteção social existentes. A estabilização e institucionalização das plataformas como um mecanismo de gestão ainda são incertas. A história do capitalismo sugere que a extração de mais-valia dos trabalhadores requer mecanismos potentes de controlo e a postura permissiva das plataformas em relação à oferta de mão de obra pode não ser compatível com a busca dos mercados por preços baixos capazes de atrair um grande número de clientes. No entanto, ao exercer maior controlo sobre o processo laboral, os horários de trabalho e os níveis de esforço, as plataformas correm o risco de reduzir a sua capacidade de atrair trabalhadores e aumentar a possibilidade de litígios legais por parte dos trabalhadores injustamente classificados como independentes.

É nessa nota que termino, destacando a importância do surgimento de formas amplas de resistência dos trabalhadores de plataformas, em Portugal e em outros pontos do globo, principalmente no setor de transporte de pessoas e da distribuição alimentar. A sua ação inclui greves, manifestações, litígios jurídicos e a formalização de organizações que os representem. Os fóruns digitais e as redes sociais têm desempenhado um papel importante na organização destas ações coletivas, indicando que podem proporcionar uma forma alternativa para a criação de solidariedade entre pares, na ausência de espaços laborais comuns. A luta destes trabalhadores tem se apresentado, assim, como uma força social de resistência aos avanços da flexibilização selvagem e unem-se ao repto de várias vozes que exigem a garantia de um trabalho digno e de uma vida boa.