A arte da revolução: do Abril que se fez ao Abril que nos falta

“Um graffiti em rock”

Em conversa recente, Sérgio Godinho define assim a canção que nos ensinou a declinar as condições da Liberdade: “a paz, o pão, habitação, saúde, educação.” 50 anos depois do 25 de abril, sempre que nos pedem as contas do que se fez e ficou por fazer, o graffiti em rock é mais seguro do que saber a tabuada. Ainda bem.

A paz que se conquistou com a descolonização e o fim da guerra colonial. O pão que precisou da instauração do salário mínimo nacional e da segurança social pública e universal. A habitação com os processos de autoconstrução e com a construção de habitação pública e cooperativa. A saúde com a criação do Serviço Nacional de Saúde, a educação com a universalização e alargamento da Escola Pública.

Contamos as cinco condições da Liberdade pelos dedos da mão, juntamos as liberdades iniciais de escrever e de falar, de votar e de reunir, de criar associações e partidos e cooperativas e o mais e temos um Abril imenso que criou um país novo. E sim, Abril é Liberdade e aqui estamos. Nem imaginamos que se pudesse viver de outra maneira. 

Mas deitamos contas à nova vida pelos dedos da mão: a paz, o pão, habitação, saúde, educação… e mais 50 anos. Tudo mudou e é claro que mudou e ainda bem que mudou e como mudou. Mas tudo está também ainda por fazer. Mesmo quem não tem memória do que foi, porque não viveu a mudança nem a construiu de nenhuma forma, conhece a tabuada da Liberdade e sabe fazer as contas pelos dedos da mão. O salário médio não passa dos mil euros líquidos e um T2 tem uma renda de mil e duzentos euros.

Se Abril for museu de pouco nos serve. Se for gratidão pelo que se fez é bonito, mas não garante o pão. Que seja então força.

“Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.”

Maria Velho da Costa a contar dos dias em “As Mulheres e a Revolução”. A Revolução que o golpe militar abriu e que foi do povo. E o povo quis um país para viver de cabeça erguida e construiu esse país.

Portugal construiu escolas, ergueu hospitais, fez o saneamento básico e a água e a luz chegaram às casas. A quase todas, pelo menos. Trocou barracas por bairros e censura por cultura e ciência e arte. E isso foi construção popular.

No deve e haver dos avanços e recuos, as mulheres ganharam quase tudo e ficou quase tudo por ganhar. As mulheres que fizeram a revolução: a do salário igual, do direito à licença de maternidade, da casa, do acesso à saúde, de sair do analfabetismo a que estavam condenadas, de deixarem de contar os filhos entre os mortos e os vivos. As mulheres conquistaram muito, mas não fizeram a sua revolução. Foram atropeladas pelas tantas urgências e com elas tantas outras lutas foram ficando em lista de espera. 

Outras duas Marias, Maria Teresa Horta e Isabel Barreno, haveriam de criar o Movimento de Libertação das Mulheres. Um movimento com uma existência breve e que no seu manifesto de 1975 afirmava o direito ao aborto e ao corpo, o reconhecimento do trabalho doméstico, o direito a creche. Foram muito literalmente atacadas pelo conservadorismo, à direita e à esquerda, e ainda hoje temos a sua agenda por cumprir.

Demoraríamos 23 anos até ao referendo de 2007 que reconheceu o direito à interrupção voluntária da gravidez, com uma das leis mais recuadas da Europa e a que se juntam entraves humilhantes e ilegais impostos por instituições de saúde por todo o país. Seria preciso esperar por 2015 para que a lei não considerasse menos ofensiva a violação dentro da família ou por figura de autoridade. O trabalho doméstico continua fora do código do trabalho e não há qualquer garantia de vaga gratuita em creche.

Mudou tudo, claro que sim, mas a violência doméstica é crime público há mais de duas décadas e o femicídio continua a ser um dos maiores problemas de segurança interna do país. O salário igual é da lei, mas não da vida. Os cuidados continuam entregues a elas, quer queiram quer não queiram, e se são informais não são pagos e se são formais são mal pagos.

Com o patriarcado, todas as outras estruturas de opressão que ficaram e que se mantêm, de classe mas não só, são razão de atraso e, hoje, são trincheiras da extrema-direita. Bruno Candé foi assassinado por ser negro, em 2020, e Cláudia Simões, agredida violentamente pela mesma razão, está a ser sujeita a um humilhante processo em tribunal. A ciganofobia é um quase consenso nacional. Há quem aqui nasça e permaneça estrangeiro. Há uma lei das acessibilidades que nunca saiu do papel e a regra continua capacitista. E se o orgulho sai do armário em marchas cada vez mais numerosas, este ano começou com o Presidente da República a vetar instrumentos legais de respeito pela identidade de género.

“Isso era dantes”, sim, é verdade. Mas não completamente. Como na frase certeira da penúltima carta das Novas Cartas Portuguesas: “Em boa verdade vos digo: que continuamos sós, mas menos desamparadas”.

“O gosto que dá pensar em conjunto com alguém que diz o contrário do que a gente está a dizer…”

Maria de Lourdes Pintasilgo foi a única mulher a chefiar um governo em Portugal. Um curto mandato de 5 meses como Primeira-ministra, com passos decididos na universalização da proteção social, e a primeira mulher candidata à Presidência da República. Numa das suas últimas entrevistas, reafirma a importância da utopia e do desassombro de descobrir novos caminhos. Afirma também a importância de pensar em conjunto.

Longe de imaginar o que viriam a ser as redes sociais, e a imposição de bolhas de isolamento dos seus algoritmos, a sua frase sobre o gosto do contraditório é pista de caminho para estes dias. “Pensar em conjunto” constrói democracia. Quando o poder económico encolhe – e como encolhe – a soberania popular, este pensar torna-se ainda mais urgente.

Portugal mudou muito desde 1974, mas não construiu o socialismo e não há cartaz liberal que torne verdade o que é mentira. Os setores estratégicos estão quase todos privatizados, a habitação pública é residual, a floresta é quase toda privada, a contratação coletiva protege uma minoria de trabalhadores. Temos muito por onde começar a pensar como fazer melhor. Pensar com outros, ou seja, ir à luta.

Trocar a afirmação de soluções concretas e em concreto por uma adesão virtual a grupos e ideias que confirmam o que já sabemos é o avesso da democracia. O confronto, o contraditório e a coragem de tomar posição (e mesmo de mudar de posição) face a desafios coletivos, olhos nos olhos com as pessoas com quem partilhamos o nosso espaço e tempo, são a disputa dos nossos dias. É tomar poder, é recusar o desamparo. A revolução exige que se tome o poder.

Fládu fla ka tem simenti” ou Falar por falar não tem semente

O verso é de Mayra Andrade em Dimokránza (Democracia).

Não vale repetir “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” sem os semear para hoje e para depois. Repetir o que se fez, não é consolo para o que falta fazer. O que falta garantir em cada um destes 5 dedos de uma mão e os outros que temos de contar: o serviço nacional de cuidados que nunca se construiu, a justiça que nunca foi para todos, a cultura que exige serviço público, a mobilidade para unir o território e a proteção dos bens comuns – a água, o solo, o ar – do absurdo extrativista.  

Cada conquista, em si mesma, parece absurdamente distante e impossível. No início dos anos 70, pareceria impossível a Escola Pública que conhecemos ou a criação do SNS. Vistos isoladamente, tais direitos são impagáveis e incapazes de alcançar uma maioria social. Assim não foi, porque não foram objetivos isolados. Foram revolução! Foram partes integrantes da Liberdade – esse projeto popular radical e extraordinário. Uma vez conseguidos, impossível seria um país que não os tivesse construído.

Hoje, que sementes temos? Teremos a afirmação contra a extrema-direita e a sua violência. E teremos de a fazer com todas as forças que temos. Mas sem mais, ganhamos força? Semeamos democracia? Que projeto comum se pode declinar nas tantas construções por fazer e que são, serão, também Liberdade? Que urgência pode disputar maioria social, obrigar a pensar em conjunto, fazer um povo querer tomar o poder?

Correr pela vida. 2030 está ao virar da esquina e a descarbonização não aconteceu. Os cientistas avisam que o aquecimento global é mais rápido e os seus efeitos mais extremos do que previam há uma década. Não temos tempo, temos de ter ação. Um enorme plano anticapitalista, de investimento público e de emprego, de salário e de direitos, que não deixa ninguém para trás.

Afirmar a certeza da urgência da transição sem disputar uma maioria social para o fazer é inútil. Mas disputar a transição justa é a obrigação revolucionária destes tempos. A transição é o confronto com o poder económico e a criação de alianças populares. Na mudança dos modos de produção, mobilidade e consumo se tecem novas teias para as grandes mudanças democráticas e de emancipação. 

Celebrar 50 anos de cravo morto ao peito é coisa do passado. Este é o tempo de plantar o cravo e garantir-lhe a água, o solo e o mais.