A cultura dos jogos é, desde sempre, reflexo das sociedades que os criam. Cada jogo é uma miniatura do mundo: um território temporário ou um laboratório simbólico onde se ensaiam hierarquias, valores e relações, onde se pode vencer, perder, recomeçar ou simplesmente existir. Jogar é participar (mas também criar) num universo com regras próprias. Os jogos mostram-nos que nenhuma regra é natural, todas são inventadas, e por isso todas podem ser alteradas. Nos jogos, reproduzimos o mundo e também o reinventamos.
Na era digital, os jogos online tornaram-se mais do que passatempos. São espaços de socialização, de pertença e de performance. Para muitos, os jogos e as comunidades que deles nascem são a principal fonte de interação humana. É por isso expectável que se apontem dedos aos videojogos quando falamos da radicalização dos jovens, em particular dos rapazes.
#GamerGate e guerra cultural
É impossível falar de jogos e de manoesfera sem falar de #GamerGate. Este episódio, que explodiu em 2014, foi um momento importante de sobreposição entre uma parte da comunidade gamer e a manosfera. O que começou como post de um ex-namorado a acusar falsamente uma criadora de jogos independentes de beneficiar de imprensa positiva por ter tido relações sexuais com um jornalista tornou-se rapidamente numa campanha coordenada de assédio contra mulheres, pessoas queer e jornalistas que defendiam uma leitura mais inclusiva da cultura dos jogos.
Sob a bandeira da “ética no jornalismo de videojogos”, formou-se um movimento de milhares de utilizadores mobilizados em fóruns, no Twitter e no Reddit. O seu verdadeiro alvo não era a corrupção mediática, mas a ideia de que o mundo dos jogos pudesse pertencer a mais alguém que não aos homens brancos cis hetero, que estariam sempre em desvantagem neste novo mundo que seria preciso destruir. Mulheres criadoras foram perseguidas, endereços pessoais publicados, ameaças de morte e de violação multiplicaram-se. O termo “feminista” tornou-se insulto; “justiça social” virou sinónimo de censura.
O #GamerGate funcionou como um ritual de iniciação política. Muitos dos seus participantes migraram depois para outros movimentos online (antifeministas, nacionalistas, conspiracionistas) que hoje compõem o ecossistema da manosfera e da extrema-direita digital. Aprenderam ali a gramática da mobilização em rede, o uso do humor como arma, a transformação da indignação em identidade. Os videojogos, que existiam à primeira vista como interesse comum, serviram como mero pano de fundo, tendo muito pouco que ver com a batalha ideológica que se travou.
Linguagem e pós-ironia
É natural que, sendo a internet o principal meio de formação política para muitos e tendo os videojogos como referente comum para muitos jovens, a linguagem dos jogos seja utilizada para comunicar ideias políticas. É também natural que essa linguagem acabe por transbordar para o mundo real. O recente assassinato de Charlie Kirk, um membro da extrema-direita dos EUA, revelou que as munições usadas pelo atirador tinham inscritas frases e símbolos aparentemente com referências a jogos e a outras subculturas da internet, mas sem grande significado aparente.
Essas inscrições não provam que os jogos geram violência, mas mostram como a linguagem lúdica e irónica da internet se tornou um idioma comum, em que muitas vezes é difícil distinguir o nonsense daquilo que é “pós-irónico”, ou seja, é uma mensagem que veicula uma opinião mais ou menos literal, mas de uma forma irónica.
Nesse ambiente em que tudo é um jogo, a fronteira entre piada e agressão torna-se difusa. O problema não é o jogo em si, mas o modo como certas comunidades transformam a ironia em cinismo e o riso em ressentimento. Jogar não cria monstros; o que é perigoso é perder a consciência de que se está a jogar. Quando o “é só uma brincadeira” se torna desculpa para a crueldade, o jogo deixa de ser um espaço de liberdade e converte-se em linguagem de exclusão.
Pânicos morais e medo do jogo
A história dos jogos está cercada de desconfiança. Desde sempre que cada nova forma de entretenimento é acusada de corromper a juventude. Pokémon foi acusado promover o satanismo, Dungeons & Dragons de incitar ao suicídio, Marilyn Manson de inspirar massacres escolares. Antes disso, o próprio rock’n’roll e os livros de banda desenhada foram acusados de incitar à violência juvenil, gerando uma verdadeira caça às bruxas. A cada geração repete-se o mesmo medo: o de que a imaginação escape ao controlo dos adultos.
Mas os jogos não estão na origem da violência. Servem antes como válvula de escape de emoções, como o medo e a frustração, e alimentam o desejo de reconhecimento e a procura de um mundo imaginado melhor do que o real. Os jogos são também espelhos que podem amplificar as tensões do seu tempo. O perigo não está no jogo em si, mas naquilo que a sociedade deposita nele.
Roblox: o jogo como espelho do mundo
No entanto, a cultura dos jogos nunca foi apenas uma repetição das narrativas hegemónicas. Nos últimos anos, emergiram plataformas que transformam o próprio ato de jogar numa experiência social aberta, onde a criação e a convivência substituem a pura competição. Roblox é talvez um dos exemplos mais populares, particularmente entre crianças e pré-adolescentes.
Ao contrário dos jogos tradicionais, o Roblox não tem uma narrativa fixa, nem objetivos predefinidos. É uma constelação de mundos diversos em constante mutação, construídos por milhões de utilizadores que criam os seus próprios jogos, espaços e personagens. Essa abertura radical faz do Roblox um território contraditório: nele coexistem a misoginia e o culto incel, universos onde as jogadoras são ridicularizadas e/ou excluídas, com rituais de solidariedade e de imaginação política.
Nos últimos anos, assistiu-se na plataforma a missas virtuais, vigílias pela paz, manifestações pró-Palestina e até funerais coletivos de vítimas de conflitos reais. Jovens utilizadores transformam o jogo num espaço de expressão simbólica, de protesto e de cuidado. Em contrapartida, outros criam arenas de humilhação, simulam violência sexual e mundos distorcidos onde o “masculino” é sinónimo de dominação absoluta.
O Roblox é um espelho da ambiguidade da cultura digital: é, simultaneamente, uma máquina de radicalização machista e de emancipação e comunhão. A sua estrutura aberta permite que a mesma ferramenta seja usada para reproduzir o ódio ou para ensaiar novas formas de solidariedade. No fundo, o que está em causa é o modo como as comunidades se apropriam do espaço e o tipo de masculinidade que ali se pode aprender.

Jogos sem violência: outros modos de ser e jogar
Apesar da hegemonia dos títulos baseados na conquista e no combate, há uma crescente corrente de jogos que propõem formas alternativas de relação, ação e emoção. São experiências que recusam o paradigma da força e exploram o jogo como espaço de cuidado, escuta e criação conjunta.
Em Journey, o jogador atravessa um deserto em silêncio, encontrando outros viajantes anónimos com quem só se pode comunicar através de gestos e sons. Não há competição, nem vitória, apenas presença e empatia. Life is Strange apresenta duas adolescentes que viajam no tempo para lidar com o trauma. Em The Last of Us Part II, o jogador tem de habitar tanto o papel da amiga da vítima que procura vingança, quanto o da assassina, problematizando a conceção de justiça, nomeadamente do punitivismo. Estes títulos desafiam a relação entre ação e virilidade. São exercícios de reeducação emocional e de desconstrução. Jogar é assim também configurado como um ato de escuta e de vulnerabilidade.
A cultura gamer, vista de longe, parece um território coeso. Mas, por baixo das grandes narrativas, há uma infinidade de microcomunidades que reconfiguram o que significa jogar. Nos espaços mais sombrios, como os fóruns de incels e os canais de ódio, o jogo é instrumentalizado como metáfora da luta perdida contra a emancipação feminina. A frustração é reinterpretada como destino biológico; a solidão como prova de superioridade moral. A linguagem é a mesma da manosfera: “as mulheres são hipergâmicas”, “os homens verdadeiros estão em extinção”. Cada derrota no amor é explicada como falha do sistema. Há quem use os jogos para procurar refúgio, outros revolta. Há quem use o jogo para dominar e quem o use para cuidar.
“Gaming bom” e “gaming mau”? O horizonte político dos videojogos
Reduzir a discussão sobre os videojogos a uma luta entre o “gaming mau”, violento, e o “gaming bom”, do cuidado e da vulnerabilidade, seria um erro. Como lembrava Johan Huizinga em Homo Ludens, o jogo é um espaço separado da vida, um território simbólico onde se pode experimentar, por exemplo, a violência sem a cometer. A violência no jogo é uma linguagem, não uma instrução. Tal como no cinema ou no teatro, esta serve para pensar sentimentos como a perda, a pulsão e a culpa sem os tornar reais. Miguel Sicart, investigador e autor de A Ética nos Jogos de Computador, amplia essa visão. Para ele, o jogador não é apenas homo ludens, mas também homo poieticus, ou seja, um criador ético que, ao jogar, constrói mundos e se torna responsável por eles. Jogar é, portanto, um exercício de responsabilidade poética: cuidar do mundo que se cria, das regras que o sustentam e das relações que o definem.
A partir dessa perspetiva, Sicart aponta a emergência de três desafios éticos centrais. O primeiro é que os jogos refletem e reproduzem a cultura que os produz e, falando de manosfera, são em alguns casos espelho de uma obsessão com a virilidade e a subalternidade das mulheres. O problema não é que os jogos possam por si gerar violência, mas que naturalizem o conflito como única forma de identidade masculina. Cabe ao jogador ético interrogar o que simboliza essa violência e imaginar outras formas de convivência, outras masculinidades possíveis. O segundo desafio é a exposição pública do jogo. Na era dos streams e das lives, jogar tornou-se performance. Cada gesto é partilhado, amplificado e interpretado, muitas vezes, como espetáculo de masculinidade ou de agressão simbólica. A ética do jogar, aqui, estende-se à forma como participamos nessa tendência, ou seja, como resistimos à tentação de ridicularizar, humilhar e de usar a ironia como arma de arremesso. O homo ludens poieticus é chamado a ser também um espectador crítico da sua própria performance.
O terceiro desafio é o jogo como transação de dados e atenção. No capitalismo de plataforma, o ato de jogar é vigiado, quantificado e comerciado. A liberdade lúdica coexiste com a vigilância e com a mercantilização da emoção, seja pela venda de anúncios direcionados que transformam cada gesto em dados comerciais, seja pelas loot boxes, cofres virtuais pagos que oferecem recompensas aleatórias e transformam a expectativa e o prazer em lucro, transformando qualquer jogo num casino. A ética do jogo, nesse contexto, implica proteger a autonomia e a privacidade do jogador e preservar o brincar como ato de liberdade num sistema que tenta transformá-lo em mercadoria.
Um jogo pode ser brutal e, ainda assim, profundamente humanista. Pode ensinar empatia através da derrota e dignidade através da resistência. A questão não é eliminar a violência, mas compreender o que ela revela sobre nós e sobre o mundo que criamos. A ausência de conflito produziria apenas anestesia. O jogo existe também porque há fricção, e é nela que se desenha a ética do homo ludens poieticus.
Mais do que proibir ou moralizar, importa disputar o significado do jogar: fazê-lo espaço de crítica, de criação e de comunidade. A hegemonia não se combate com censura, mas com presença. Urge por isso, em vez de demonizar, pensar e participar em novas formas de jogar, de contar histórias, de imaginar o outro, dentro e fora do jogo.