A distopia do futebol feminino

Era uma vez, algures, um grupo de mulheres que se lembrou de dar um pontapé numa bola. Ficaram tão satisfeitas que decidiram continuar a fazê-lo e reivindicar um espaço nos campos de futebol que, até então, eram apenas utilizados por homens. Quem dera que este fosse um conto de fadas que terminasse com “e viveram felizes…”. Porque, desde então e até agora, muitas jogadoras de futebol não têm tido vida fácil. E a bola rola, e embriagamo-nos com a felicidade de fazer parte de uma equipa, partilhando vitórias e derrotas, apaixonando-nos, irritando-nos, chorando e rindo, mas o elefante na sala permanece. A jogadora não vai receber o mesmo que o seu congénere masculino, nem sequer vai ter as mesmas oportunidades que ele. Mas contemos a história pelo princípio. 

Os estádios e, em última análise, o desporto, são um microcosmo e um reflexo da sociedade, pelo que a desigualdade de rendimentos no futebol feminino não é exceção. No entanto, a disparidade salarial não diz respeito apenas aos salários e compensações das jogadoras. Trata-se de uma total inadequação e degradação, desde as instalações e infraestruturas até às licenças de maternidade e condições de trabalho.
Décadas de subfinanciamento resultaram numa escalada de lesões, principalmente nos joelhos. Estatisticamente, dado que a prioridade em termos de infraestruturas é dada por defeito às equipas masculinas, as futebolistas femininas têm seis vezes mais probabilidades de sofrer uma lesão grave do que os futebolistas masculinos. E não esqueçamos que muitas atletas femininas continuam a lutar pelo direito à licença de gravidez e de maternidade. Num anúncio recente, a Panhellenic Association of Paid Female Football Players (PSAPP) denunciou e exigiu a supressão de um parágrafo específico de todos os contratos privados de jogadoras de futebol, que estipula que “Em caso de gravidez da Atleta, este facto constituirá automaticamente um motivo relevante para a rescisão deste contrato, sem qualquer responsabilidade ou obrigação financeira, por parte da Associação para com a Atleta, durante o período restante do acordo e até ao seu termo”.
São muitas as histórias, conhecidas ou não, que ocorreram ao longo dos anos sobre a luta desigual e invisível das seleções nacionais de futebol feminino. Quanto a isto, é particularmente emotivo o episódio que envolveu a seleção feminina da Jamaiza. 

Em 2014, Sedella Marley, filha da lenda do reggae, lê por acaso um folheto – um apelo da seleção de futebol feminino, pedindo financiamento e apoio após anos de declínio e degradação que, em 2008, levaram à dissolução da equipa. A desculpa era que não havia os recursos necessários para financiar a equipa, embora os fundos para a equipa masculina correspondente continuassem a fluir normalmente. Desde 1991, quando a equipa de futebol feminino disputou o seu primeiro jogo oficial, até à sua participação neste Campeonato do Mundo, foi muito desacreditada, não teve qualquer apoio da Federação, as jogadoras pagaram as suas próprias despesas até ao limite das suas possibilidades. Lavavam a sua própria roupa, juntavam-se e treinavam quando podiam. Desde as viagens até alimentação, do alojamento aos campos de treino, todas as áreas da Seleção Nacional Feminina precisavam de financiamento. Sendela, que dirige a fundação que leva o nome do pai, pesquisou o assunto e decidiu trazer as “Reggae Girlz” de volta à vida. A busca por recursos não foi uma tarefa fácil. A equipa encontrou obstáculos a cada passo, uma vez que até o facto de algumas jogadoras terem declarado abertamente que eram homossexuais era um tabu na Jamaica e travava o financiamento. 2019 foi finalmente o primeiro ano em que a Seleção Nacional Feminina da Jamaica se qualificou para o Campeonato do Mundo da FIFA, tornando-se o primeiro país das Caraíbas a qualificar-se para o Campeonato do Mundo Feminino!

O problema começa com os objetivos do balneário. As equipas masculinas recebem múltiplos financiamentos pela participação nas respetivas ligas femininas. Por exemplo, só a participação de uma equipa na fase de grupos da Liga dos Campeões vale-lhe o montante mínimo de 16 milhões de euros, ao passo que, simultaneamente, a equipa que vencer a Liga dos Campeões Feminina receberá 350 mil euros. Ou seja, um montante inferior ao que uma equipa recebe por se qualificar para a… segunda fase de qualificação da principal competição masculina. A campeã mundial, Argentina, e a federação do país, por extensão, colocaram nos cofres a quantia de 37 milhões de euros pela conquista do Campeonato do Mundo no Qatar, enquanto a Espanha, que venceu o Campeonato do Mundo Feminino na Austrália e na Nova Zelândia, recebeu da FIFA cerca de 5 milhões de euros. Para os adeptos das estatísticas, a australiana Sam Kerr é a jogadora de futebol mais bem paga do planeta. A atacante internacional do Chelsea recebe quase meio milhão de euros por ano, ou seja, tanto quanto Cristiano Ronaldo recebe num… dia de Al Nassr! O salário anual de Messi no Paris Saint-Germain atingiu os 41 milhões de euros, um montante equivalente ao salário de 1700 jogadoras das ligas da Alemanha, Austrália, América, França, Inglaterra, Suécia e México.

Haverá uma explicação para a diferença salarial? Há defensores convictos de que é óbvio e simples, e que a razão pela qual as jogadoras de futebol recebem menos não é a desigualdade. O Campeonato do Mundo de 2022, no Qatar, estabeleceu um recorde de receitas de 7,5 mil milhões de dólares com – aparentemente – grandes acordos comerciais com o país anfitrião. A Qatar Energy juntou-se como patrocinador principal e os novos patrocinadores incluem o banco QNB do Qatar e a empresa de telecomunicações Ooredoo. Assim, se o Campeonato do Mundo de Futebol Feminino rende quantias tão baixas, com as emissões de rádio, a publicidade e os anúncios, as jogadoras querem o quê? Quanto a nós, tais argumentos não passam de sexismo institucionalizado. Argumentos clichés, segundo os quais o futebol masculino é mais bem-sucedido comercialmente do que o feminino. É que a questão está para além dos números. Tem a ver com o grau em que o futebol feminino é valorizado e promovido, mas também a convicção de que, embora com diferenças, as jogadoras se esforçam da mesma maneira, no auge das suas capacidades.

Na luta pela igualdade salarial há muitos e belos exemplos, mas, naturalmente, esta batalha foi cheia de dificuldades, fracassos e descrédito. Em 2017, a Noruega foi o primeiro país a procurar obter igualdade de remuneração nas competições internacionais de futebol masculino e feminino. A esta luta histórica para o futebol mundial seguiu-se, um ano mais tarde, a da Nova Zelândia, que colocou a igualdade de condições de trabalho para as jogadoras de futebol no âmbito de acordos coletivos. Salário igual, prémios monetários iguais, direitos de imagem iguais e condições de trabalho iguais. Estas são as coisas pelas quais as jogadoras internacionais lutaram, com sucesso. A seleção australiana, que ocupava o 8º lugar no ranking mundial, vendo a sua equipa masculina ocupar o 44º lugar e, ao mesmo tempo, receber salários mais elevados, avançou também, e com razão, para a igualdade de remuneração das equipas. A luta já tinha começado em vários outros países, com várias dificuldades e algumas derrotas. Em julho de 2019, os EUA ganham o Campeonato do Mundo de Futebol Feminino pela quarta vez. Num ambiente de festa, emoção e apoteose, ouve-se a voz do público nas bancadas a gritar “igualdade salarial!”. Para as 28 jogadoras da seleção nacional, a luta já tinha começado quando, em março desse ano, decidiram processar a Federação de Futebol dos Estados Unidos. A Federação argumentou que as “realidades do mercado” explicavam as diferenças salariais. O Campeonato do Mundo de Futebol de 2019 bateu recordes de audiência nos EUA, com 25,4 milhões de espectadores, e 1,12 mil milhões de espectadores em todo o mundo. No entanto, o prémio monetário total da FIFA foi de 30 milhões de dólares.

Gostaria de poder dizer que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) tomou uma posição sobre as reivindicações das jogadoras de futebol. Durante os jogos fora de casa, manteve-se silenciosa e ausente. No final, cedeu às lutas em curso e anunciou que os prémios monetários da competição feminina seriam iguais aos da masculina até 2027.

Embora jogar pelo seu país seja um motivo de orgulho, as jogadoras precisam de um apoio financeiro significativo, pelo menos ao mesmo nível que os masculinos. O investimento das associações de futebol em instalações e formação para reforçar o rendimento das jogadoras provenientes das academias de jovens e uma maior cobertura mediática, com a apresentação simultânea dos resultados de homens e mulheres, são os próximos passos. Apesar dos progressos registados até à data, a luta pelo respeito e pela igualdade continua. Também nós estaremos aqui, dentro e fora dos relvados, para contar as histórias destas mulheres.