Os sistemas educativos, um pouco por todos os contextos ocidentais, veem-se marcados por diferentes tensões e discursos que procuram, direta ou indiretamente, condicionar o modo como os agentes vivenciam as diferentes experiências pedagógico-curriculares; quais são as finalidades e princípios ético-educativos que enquadram os múltiplos sistemas; e, até mesmo, que aspirações são particularmente pertinentes e socialmente legitimadas. Neste contexto contemporâneo, ideologicamente marcado, esses discursos privilegiam preocupações associadas às aprendizagens do século XXI, relacionadas com a preparação laboral das crianças e jovens e vinculadas à hetero-responsabilização dos sistemas educativos como elementos promotores de inovação e desenvolvimento económico.
As críticas às tendências internacionais são diversificadas, embora nem sempre reconhecidas. No substrato desses contradiscursos uma ideia parece surgir como essencial: os sistemas educativos assumem finalidades humanas, sociais e democráticas mais amplas, que não são facilmente captadas por uma conceção hermeticamente técnica ou economicamente instrumental. Para a realidade nacional, a Lei de Bases do Sistema Educativo é particularmente transparente a evidenciar a necessidade de ultrapassarmos racionalidades instrumentais da educação, esclarecendo que «o sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade» (n.º 2, artigo 1.º, capítulo I).
Apesar dessa vocação juridicamente estabelecida, o sistema educativo português não se encontra imune aos discursos mencionados no parágrafo inicial. Pelo contrário, são já vários os exemplos de opções políticas que convergem com as tendências internacionais, como: a hipervalorização de componentes do currículo tidas como economicamente mais relevantes; a atribuição de uma papel periférico e curricularmente limitado a vocações associadas à educação cidadã e democrática; o foco social emergente nos rankings dos exames nacionais; a intenção política de dissociar a carreira docente da carreira de gestor escolar; a crescente valorização de cursos de formação (inicial e contínua) de professores de feições didatizantes, à custa da diminuição de componentes orientadas para a análise pedagógica crítica; uma espécie de fetishismo transversalmente instalado relacionado com a inovação pedagógica, que não raras vezes se consubstancia na promoção de práticas pedagógicas de aparatosa técnica, mas com reduzida fundamentação educativa.
Por esse motivo, e mesmo com um enquadramento normativo que parece favorecer um sistema educativo de maior implicação política, democrática e cidadã, necessitamos, com a devida urgência, de reconhecer que as tensões que condicionam o trabalho escolar não subscrevem essa finalidade como, ainda, podem promover conceções e práticas educativas que se afastam dos pressupostos subjacentes à Lei de Bases do Sistema Educativo. É premente avançar com outros discursos que permitam o desenho de alternativas. É urgente estabelecer um compromisso com o pleno desenvolvimento de cada pessoa e a democratização da sociedade como fundamentos estruturantes da organização escolar e das experiências por ela promovidas.
Esse compromisso é, talvez, vivenciado na sua forma mais plena quando se privilegia uma educação democrática, isto é, uma educação para, pela e em democracia. Para melhor se compreender essa alternativa, é fundamental perceber-se o próprio conceito de democracia. Partindo de uma interpretação autónoma do trabalho de Christiano e Bajaj (2024), democracia é um processo de deliberação coletivo que, entre outros, se fundamenta nos seguintes alicerces: i) uma certa igualdade entre os agentes, que lhes possibilita a decisão conjunta; ii) a necessidade de participação autónoma desses mesmos agentes; iii) a relevância de valores como a justiça, a virtude, a pluralidade de posicionamentos e a inclusão; iv) o compromisso do coletivo com a ideia de um bem-comum, que não se circunscreve ao conjunto dos interesses individuais.
Assim, refletir sobre a educação democrática exige uma ponderação sólida sobre distintos domínios que constituem e corporizam a própria existência escolar, que não podem ser reduzidos a slogans mais ou menos imediatistas. De forma sintética, existem três domínios que podem ser destacados: o corpus de conhecimento que a escola privilegia; as experiências educativas vivenciadas; as características organizacionais de cada escola.
O primeiro associa-se àquilo que, coletivamente, entendemos que tem de ser ensinado na escola – vulgarmente denominado de currículo. Historicamente, a escola estabeleceu-se como uma organização orientada para a preservação e partilha de determinados conhecimentos, especialmente relevantes para serem aprendidos pelas gerações mais jovens. Se visamos, verdadeiramente, assumir um compromisso com a educação democrática, é estruturante ponderar sobre três eixos: i) quão imperioso é que o conhecimento escolar não se reduza a um saber hermético ou meramente utilitário, e antes contribua para a tomada de consciência crítica e multiperspetivada da realidade, para uma maturação pessoal e coletiva plena e harmoniosa, para ampliar os sonhos e a imaginação de alternativas sociais, políticas e económicas; ii) a importância de garantir a diversidade de identidades e saberes, evitando formas de epistimicídio curricular, valorizando, em contraciclo, a pluralidade de referências e heranças culturais, a diversidade de domínios científicos e artísticos; iii) os valores éticos que são preservados pela escola, que são, também eles, apropriados pelas e pelos estudantes.
Como segundo elemento de ponderação, necessitamos de refletir sobre as próprias práticas pedagógicas. À semelhança do que já foi mencionado, a educação democrática deverá estabelecer-se como um processo educativo para a, em e pela democracia. Esse pressuposto exige a experiência de momentos escolares caracterizados por uma democraticidade implícita, caracterizados por se estabelecerem como momentos de decisão coletiva, em que cada estudante tem a possibilidade de assumir a sua agência e autonomia e, em conjunto com outros, decidir, sem que tal decisão seja entendida como uma ditadura da maioria, mas como resultado de um diálogo e compromisso com o bem coletivo.
Como último eixo de discussão, é necessário ponderar sobre as características organizacionais de cada escola. Dada a dimensão do texto, três grandes ideias requerem atenção: i) o modo como a escola se relaciona com a comunidade, pois não é possível idealizar modos de educação democrática se a escola reduzir a sua função à ideia de prestação de serviço à comunidade, sendo os agentes locais meros consumidores de ensino, sem que exista qualquer tipo de diálogo ou compromisso coletivo; ii) a forma como cada organização escolar considera a diversidade cultural e a pluralidade de perspetivas que compõem cada escola, privilegiando o diálogo e os valores característicos da democracia; iii) a promoção estruturas organizacionais verdadeiramente democráticas, marcadas pela partilha de poderes, pela promoção de mecanismos de decisão colegial, pela garantia que todos e todas (docentes, discentes e não docentes) são agentes de facto da escola, que partilham um certo estatuto de igualdade e comunidade e ativamente tomam decisões.
Em jeito de síntese, com este pequeno texto procurei, acima de tudo, reivindicar a necessidade de se entender a democraticidade do sistema e das experiências como uma característica que deveria encontrar-se intrínseca a cada um deles e não como um objetivo difuso a ser vivenciado no exterior das realidades educativas.