A “estabilidade”, as maiorias e as minorias

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Artigo por Mafalda Escada, militante do Bloco de Esquerda


O recurso à “estabilidade” como cartada política não é de agora, mas após o chumbo do OE2022, consolidou-se novamente no discurso político. Em contexto de incerteza, pode provar-se fértil. Perante a chantagem, convém debater esta “estabilidade” que não é a nossa – a da vida concreta da maioria trabalhadora. São os governos maioritários mais estáveis e eficientes? Como devemos olhar para as maiorias/minorias parlamentares?

Governos minoritários não são necessariamente governos menos capazes de governar, mas têm de governar de maneira diferente. Políticas implementadas por governos maioritários não se revelam mais resilientes do que aquelas implementadas por governos minoritários. A estabilidade não rima, portanto, com maioria. Além disso, a chave para a resiliência das políticas implementadas, tanto por uns como por outros, parece ser o consenso. A negociação não é, então, indício de instabilidade. Pelo contrário, fomenta a estabilidade das medidas a implementar. Estas não são premissas meramente ideológicas, são conclusões da investigação empírica que tem sido feita sobre o tema. (1)

As maiorias absolutas são más para a democracia. As maiorias de Cavaco permitiram fechar a porta ao aprofundamento democrático que se deveria ter seguido ao PREC. As maiorias podem ser autoritárias. Por exemplo, entre 1983-1995 (bloco central e maioria de Cavaco), o Parlamento perdeu protagonismo, o debate político foi cada vez mais “tecnocratizado” em comissões, a distribuição dos tempos de intervenção prejudicou a representação de minorias (2). As maiorias dispensam negociação e compromissos democráticos. Basta recuar ao tempo da troika para o comprovar. São governos com menos escrutínio parlamentar que entram mais facilmente em roda livre. No caso de 2011-2015, falamos do “ir além da troika”. 

Pelo contrário, governos minoritários tendem a ser mais democráticos, porque precisam de negociar, e até previsíveis, valorizando mais o programa eleitoral sufragado nas urnas. Primeiro, porque precisam de se legitimar continuamente, tentando cumprir mais promessas eleitorais e outros acordos que sejam forçados a estabelecer. Segundo, porque à falta de uma maioria de deputados, tendem a ancorar-se na vitória do seu programa. Se a estabilidade que nos importa é a estabilidade da política concreta, então interessa-nos um PS minoritário que seja obrigado a confrontar-se com os seus compromissos eleitorais, quando bem sabemos a distância entre a sua palavra e ação. Em 2015, o PS dedicou quatro linhas do seu programa a afirmar a intenção de “limitar o uso pelo Estado de trabalho precário” (3). Não fosse o PS confrontado e pressionado, não teria esta parca intenção sido convertida no PREVPAP. Não fosse o PS obrigado a confrontar-se com a sua rutura com a direita em 2015, não teria havido “geringonça”. Interessa-nos, portanto, um governo minoritário obrigado a aceitar medidas que não tinha previsto, nomeadamente nas questões sociais mais urgentes.

Mas já não estamos em 2015 e não basta um governo minoritário do PS, tal como se comprovou este ano. Ao longo da sua história, o partido com que o PS mais convergiu em matérias estruturais foi, sem surpresas, o PSD. É perante governos minoritários que a oposição mais cumpre as suas promessas eleitorais. Nos sistemas políticos em que as minorias são a regra, é comum os governos se virarem ora para a esquerda, ora para a direita e “distribuírem” esse cumprimento conforme lhes convém. Por cá, durante o governo minoritário de Sócrates, o PSD cumpriu 38,2% do seu programa, apenas menos 8% que o PS (4). Tal como então, temos hoje uma presidência de direita, o que nos pressiona a uma alternativa à esquerda que seja coerente, consistente, credível e deslegitime a interferência de Marcelo. Porém, ao contrário de então, temos agora um PS mais próximo do PSD, com sinais claros de flirt político.

Constatado que uma minoria PS não garante uma política de esquerda, mais hoje que em 2019, é crucial que a campanha eleitoral obrigue o PS a definir-se face à sua ambição de um bloco central e a demarcar-se do PSD. É hoje tão, ou mais, claro que o apoio a um governo minoritário do PS, caso seja esse o cenário saído das eleições, só pode acontecer mediante um acordo claro, inescrutável, abrangente e exigente e que responda a questões estruturais, a começar pelas leis laborais e pela saúde.

 

1 Ver, por exemplo:

Boeri, T., Barba Navaretti, G., & Fondazione Rodolfo Debenedetti (Eds.). (2006). Structural reforms without prejudices. Oxford University Press. 

Tompson, W. (2009). The Political Economy of Reform: Lessons from Pensions, Product Markets and Labour Markets in Ten OECD Countries. OECD. 

Moury, C., & Fernandes, J. M. (2018). Minority Governments and Pledge Fulfilment: Evidence from Portugal. Government and Opposition, 53(2), 335–355.

Cardoso, D., Moury, C., Costa, A. P., & Escada, M. (2021). Governar para as próximas gerações: Sucessos e fracassos de políticas de longo prazo em Portugal (1995-2019). Almedina.

2 Leston Bandeira, C. (1996). O impacto das maiorias absolutas na actividade e na imagem do parlamento português. Análise Social, 31(135), 151–181.

3 Programa Eleitoral do PS para as legislativas de 2015, disponível aqui

4 Moury, C., & Fernandes, J. M. (2018). Minority Governments and Pledge Fulfilment: Evidence from Portugal. Government and Opposition, 53(2), 335–355.