A ética do “Eu” vulnerável: Judith Butler e o corpo como entidade política

As teorias de Butler pretendem questionar radicalmente a suposta naturalidade da identidade sexual, falsamente identificada como uma materialidade biológica pré-discursiva e, portanto, dogmaticamente indiscutível. Butler argumenta, em vez disso, que a identidade sexual e de género é construída cultural, social e discursivamente: todo o sujeito sexual performa constantemente o género com o qual se identifica, a ponto de moldar uma identidade de género estável e, portanto, normalizada, socialmente inteligível e politicamente reconhecida.

À primeira vista, portanto, a teoria da performatividade de género parece oferecer aos sujeitos queer uma abertura otimista de possibilidades para se auto estruturar livremente em vez do binarismo opressor do género heteronormado. Ao mesmo tempo, porém, a análise butleriana reduz a aparente autonomia do sujeito sexual, demonstrando que na verdade a performance de género nunca é uma atividade completamente individual e egocêntrica, mas sempre condicionada pelo contexto político e social em que o indivíduo leva a cabo a sua própria existência. Na verdade, de acordo com a perspetiva butleriana, a construção do “Eu” acontece sempre dentro da dimensão da intersubjetividade relacional: aquela em que o indivíduo é em virtude do “Outro” que não ele mesmo. Todo sujeito existe apenas em uma condição de vulnerabilidade constitutiva em relação à alteridade externa à qual está constantemente exposto no contexto sócio-político, ontologicamente dependente da necessidade de reconhecimento pelo “Outro”.

A condição primária de vulnerabilidade humana pode ser vista na existência corporal, já que é em primeiro lugar pela existência como corpo que o “Eu” aparece na dimensão pública. Uma ideia que torna Butler consistente com a visão hermenêutica do “Eu”, ou seja, a ideia de que o indivíduo existe e entra sempre no mundo já “lançado” num contexto histórico e sócio-político particular a cujas convenções não pode escapar. É evidente, portanto, que a existência corporal é uma forma de existência política desde o seu início e é por isso que Judith Butler defende a tese da morfogénese normatizada do corpo sexuado: a ideia de que o corpo não é mera materialidade estática, pois o “Eu” encarna-se incorporando normas sociais e aparatos de significação normativa. A partir da consciência disto, Butler pretende apontar e criticar severamente a natureza violenta e coerciva dos regimes discursivos atualmente em vigor, discriminando violentamente as subjetividades não conformes. 

De facto, e em acordo com a perspetiva de Foucault, Butler defende que o corpo materializa-se sempre em ordem a um determinado regime de verdade e escravizado por uma política de regulação e controlo das subjetividades corporificadas, de modo que subjetivação e sujeição são a face uma da outra. Os acusados ​​de performarem identidades não conformes à norma são, portanto, punidos não apenas com a discriminação social e com a negação política de seus direitos, mas são até marcados como algo impensável, como ininteligível. A própria realidade da sua existência é questionada a ponto de ser eliminada da esfera humana. A partir de uma distinção violenta entre corpos que importam e corpos que não importam, tais vidas são relegadas à esfera da abjeção, esfera que, numa sociedade fortemente falocêntrica e heteronormativa como a nossa, incluí mulheres, sujeitos queer, pessoas com HIV positivo por exemplo.

É justamente a partir destas subjetividades não reconhecidas que o pensamento crítico de Judith Butler pretende contestar estes quadros de inteligibilidade, sustentando fortemente a importância de uma ética da não-violência que surge justamente da concepção não soberana do “Eu”. A consciência da nossa não liberdade pode, de facto, assumir-se como um precioso recurso moral, traduzindo-se no apelo ético a cuidar também da vulnerabilidade do “Outro”. Além disso, compreender que os regimes regulatórios da verdade são históricos e, portanto, sujeitos ao passar do tempo pode ser utilizado como um recurso para combater sua atual seletividade violenta e discriminatória. As normas sociais, justamente pela sua origem cultural e discursiva, não são incontestáveis. E é nesse sentido que Butler argumenta que as performances de género que são dissonantes das práticas discursivas impostas podem ser desconstrutivas e subversivas em relação aos regimes rígidos de regulação corporal atualmente em vigor. Dessa forma, o que a norma social vê como uma performance incomum produz uma instabilidade vital capaz de tornar as categorias de identidade móveis e abrir novas e alternativas esferas de inteligibilidade cultural. É, pois, necessário que sejam modificados de modo a alargar os regimes de verdade para garantir o reconhecimento político e a habitabilidade humana a todas as subjetividades já existentes, mas ainda invisíveis em virtude do quadro normalizador e excludente ainda vigente.