A extrema-direita domina o debate sobre a imigração na Europa

Em janeiro passado soube-se de uma reunião secreta realizada a 25 de novembro em Brandemburgo, na qual representantes do partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) se reuniram com militantes nacionalistas e neonazis, membros do partido de centro-direita União Democrática Cristã (CDU), membros da direção da associação conservadora Verein Deutsche Sprache (Associação da Língua Alemã) e empresários importantes. O jornal Correctiv, que divulgou a reunião, disse que “foi muito mais do que uma reunião de ideólogos de direita” e que teve como objetivo traçar um “plano” para deportações em massa, caso o AfD venha a chegar ao poder para o implementar. Segundo o orador inicial, um neo-nazi austríaco, Martin Sellner, milhões de requerentes de asilo, de pessoas “não assimiladas” e de pessoas com direito de residência e cidadania alemãs mas sem “antepassados alemães”, seriam deportadas (na linguagem utilizada “remigradas”) para “um Estado modelo” no Norte de África. A polémica que se seguiu à divulgação desta reunião incluiu a inevitável comparação deste “plano” com o plano nazi de 1940 para deportar quatro milhões de judeus para Madagáscar e com a conferência de Wannsee de 1942, onde dirigentes nazis delinearam a “Solução Final” – o genocídio da população judaica da Europa. O AfD desmentiu que tenha organizado a reunião ou que tenha preparado um plano de deportações em massa.

Esta história é um bom exemplo da saliência que o tema da imigração tem para a extrema-direita e também para os partidos da direita conservadora e do centro direita. Nos últimos anos têm-se visto os partidos de extrema-direita aumentarem o seu peso eleitoral em diversos países da europa e, embora sejam diferentes entre si, a característica que os une é a demonização dos imigrantes, com destaque para a teoria da grande substituição demográfica, totalmente falsa mas apelativa (ver texto Porque é que a extrema-direita ultra radicalizada é obcecada com os cruzados? neste dossier).

Embora a Europa receba muitos imigrantes, os números atuais – um fluxo líquido estimado de cerca de 1 milhão por ano – não são suficientes para compensar as consequências demográficas das baixas taxas de natalidade. A Europa teria de duplicar o seu atual nível anual de imigração para travar o declínio da sua população, triplicar o nível para manter a dimensão da sua atual população em idade ativa e quintuplicar o nível para manter os rácios trabalhadores/idosos nos níveis atuais.

No entanto, os partidos de extrema-direita têm utilizado a imigração como instrumento de exploração de sentimentos de insatisfação, frustração, xenofobia e racismo e de promoção do nativismo. Esta extrema-direita, que nas últimas décadas tem visto aumentar o seu apoio eleitoral explorando o ressentimento da parte das populações europeias mais atingida pelas consequências da globalização, tem tido efeitos bastante nocivos para a imigração. Um destes efeitos é a legitimação de comportamentos de rua violentos contra os imigrantes, normalizados por uma comunicação social tabloide e pela berraria das redes sociais. Outro dos efeitos mais graves para a vida da população imigrante é o “chauvinismo social” defensor de um Estado-Providência apenas reservado para as populações nativas.

Mas talvez o efeito mais nocivo seja a captura dos partidos da direita conservadora e do centro- direita através da influência sobre as suas agendas políticas. Como a história já nos mostrou, a direita conservadora tradicional tende a radicalizar o seu discurso e políticas quando a extrema-direita começa a crescer e a roubar-lhe eleitorado. Procura então, num primeiro momento, aplicar políticas semelhantes às propostas pelos extremistas o que na prática apenas serve para as normalizar e pavimentar o caminho que levará a extrema-direita ao poder. Num segundo momento, em situações de necessidade para manter ou recuperar o poder, a direita conservadora faz acordos parlamentares ou mesmo coligações de governo com a extrema-direita. Como o discurso desta última se centra essencialmente sobre a imigração e dado o crescimento desta (embora não tenha ainda atingido o pico de 2015), não admira que a imigração seja a área em que os partidos de direita tenham assumido posições mais duras e restritivas, contribuindo assim, também eles, para a intensificação da política do medo.

Um destes casos é o do partido conservador britânico, no governo, que recentemente apresentou uma nova proposta de lei de imigração e asilo dirigida aos migrantes que atravessam o canal em pequenas embarcações: os migrantes serão presos, verão os seus pedidos de asilo considerados inadmissíveis e serão deportados para o país de origem ou para países terceiros. É ainda retirado às vítimas de escravatura ou tráfico de seres humanos a proteção contra a expulsão, deixando essa condição de constituir razão para a concessão de licença de permanência. Neste âmbito, o governo do Reino Unido fez um acordo com o Ruanda para deportação dos imigrantes que não poderiam ser devolvidos ao país de origem. O Supremo Tribunal considerou ilegal esta lei por o Ruanda não ser um país terceiro seguro para envio dos requerentes de asilo, considerando que estes poderiam correr o risco real de serem reenviados para os seus países de origem, onde poderiam ser vítimas de maus tratos. Assim, este acordo incluído nesta Lei foi considerado uma violação das obrigações do Reino Unido ao abrigo do direito internacional e nacional. A importância desta política como trunfo eleitoral para o governo inglês é de tal grandeza que o governo decidiu algo inusitado: apresentar um projeto de lei sobre a “Segurança do Ruanda (Asilo e Imigração)”, que institui em lei que o Ruanda é, de jure (já que de facto não o é) um país seguro, contornando assim a decisão do Tribunal, que apenas pode apreciar os textos dentro do quadro legislativo em vigor. Apesar disto, o partido conservador parece não estar a capitalizar eleitoralmente estas medidas, prevendo todas as sondagens que perca as próximas eleições legislativas.

Também em França o governo do liberal Macron, cedendo às exigências do partido de Marine Le Pen, fez aprovar recentemente uma nova lei de imigração e asilo, que os partidos de esquerda e os movimentos sociais consideram uma vergonha nacional. As associações de defesa dos direitos dos imigrantes, as universidades, os sindicatos consideram que é a lei mais regressiva desde pelo menos há quarenta anos para os direitos e condições de vida das pessoas estrangeiras, mesmo das que residem há muitos anos em França e que contribuem com trabalho, impostos e contribuições para a segurança social. A título de exemplo, com a nova lei os imigrantes condenados por crimes podem ser deportados mesmo que estejam em França há 20 anos ou desde crianças, se se considerar que são uma “ameaça grave à ordem pública”. O jornal Le Monde diz que a nova lei traduz o desprezo por princípios republicanos de base, como o direito à nacionalidade no território onde se nasceu e a igualdade perante a lei no direito às prestações sociais. O governo francês gabou-se de promulgar a lei da imigração “mais dura de sempre”. Mas a extrema-direita de Le Pen festejou a vitória das suas propostas e é esta força a que mais beneficia nas sondagens.

O principal país da UE, a Alemanha, não ficou atrás, tendo alterado em 2023 a sua política de migração e asilo num sentido mais restritivo, afastando-se das “medidas de acolhimento” associadas à governação de Merkel. Mais de três milhões de refugiados e requerentes de asilo vivem na Alemanha e no ano passado quase 300.000 pessoas pediram asilo (o número mais elevado desde 2015, quando o país recebeu mais de um milhão de refugiados), sendo a grande maioria proveniente da Síria, da Turquia e do Afeganistão. O sistema de acolhimento de migrantes entrou em crise, o que ajudou a alimentar a retórica anti-imigração da extrema-direita, tendo o AfD obtido resultados históricos nas eleições locais no ano passado. O governo (de coligação de partidos de centro-esquerda, verdes e liberais) reagiu endurecendo a legislação relativa à imigração e asilo e o chanceler Olaf Scholz pronunciou-se a favor de deportações “em grande escala” de requerentes de asilo rejeitados.

A título de exemplo, a nova legislação alemã acelera a deportação de estrangeiros que se encontram no país em situação irregular, dá à polícia poderes alargados para procurar as pessoas que receberam ordem de saída e aceder aos seus bens (como os telemóveis), simplifica os requisitos para a expulsão de criminosos e traficantes de seres humanos (incluindo os não condenados mas apenas suspeitos), elimina a obrigação de informar antecipadamente os que vão ser deportados para evitar que se escondam e prevê menores subsídios aos requerentes de asilo. Alguns Estados pretendem mesmo fazer o pagamento das prestações sociais em cupões, para evitar que os requerentes de asilo transfiram o dinheiro para familiares no país de origem. Por fim, a Alemanha continua a negociar acordos para designar mais países como “países de origem seguros”, o que permitiria deportar pessoas para esses locais. Apesar disto, os partidos da coligação de Scholz continuam muito atrás da AfD nas sondagens.

Ao nível da posição global da União Europeia, onde dominam os países de direita, em dezembro último foi aprovada uma revisão da política de imigração e asilo, apelidada de Pacto europeu para as migrações e asilo (PMA). O PMA é composto por cinco atos legislativos abordando, por exemplo, a triagem e controlo de fronteira de quem chega ou quer entrar em território europeu, as situações de crise e de força-maior, a gestão do asilo e da migração ou os procedimentos de asilo e pretende cobrir a “dimensão interna” da migração, enquanto a “dimensão externa” continuará a ser abordada através de acordos específicos com países vizinhos, como a Turquia, a Tunísia e o Egipto. O PMA permite, por exemplo, estender a aplicação dos procedimentos de controlo de entrada a todas as pessoas que já estejam na UE mas não tenham a sua situação migratória regularizada, agravando o risco de discriminação racial nos processos de investigação.  Por outro lado, o Pacto introduz medidas mais restritivas nos procedimentos de controlo de fronteira dos requerentes de asilo que tenham fornecido informações fraudulentas, podendo ir até à detenção e rápida deportação. Introduz também o conceito de “instrumentalização” de migrantes, prevendo regras excecionais que serão aplicadas quando o sistema de asilo da UE for ameaçado por uma chegada súbita e maciça de refugiados (como no caso da crise migratória de 2015-2016) ou por uma situação de força maior (como a pandemia da Covid-19). Nestas circunstâncias, os Estados membros podem suspender temporariamente os procedimentos normais de asilo e aplicar medidas mais rigorosas, incluindo períodos de detenção mais longos. O grupo d’A Esquerda no Parlamento Europeu considerou “este conceito questionável e um cheque em branco para a suspensão de praticamente todos os direitos das pessoas que procuram proteção”. O Pacto institui ainda um mecanismo de “solidariedade obrigatória” entre os Estados membros, que poderão acolher os imigrantes e refugiados que lhes chegam do exterior ou poderão enviá-los para outros estados da UE, ou até para países fora da União, em troca de pagamento.

Os partidos de esquerda e as organizações humanitárias alertaram para o risco do PMA normalizar a detenção em larga escala, padrões de acolhimento deficientes, “procedimentos de asilo apressados com salvaguardas e recursos restritos” e a devolução forçada dos migrantes para países onde enfrentam violência e perseguição, existindo mesmo a possibilidade das disposições do pacto em matéria de gestão de crises “violarem o direito internacional” e criarem um “precedente perigoso para o direito de asilo a nível mundial”. O PMA significa mais detenções, mais restrições ao direito de asilo, mais deportações e mais justificações irracionais de políticas racistas, eurocêntricas e estigmatizantes, (Miguel Urbán, deputado europeu) e “não impede os Estados de criminalizar a ajuda humanitária nem de tratar migrantes como criminosos” (Miguel Duarte, ativista do Humans Before Borders). José Gusmão, deputado europeu pelo Bloco de Esquerda, salientou que a aprovação do pacto só foi possível pela cedência às posições da extrema-direita, mostrando a sua aprovação “como a agenda da extrema-direita conseguiu permear todas as instituições europeias” e que “o acordo foi atingido com a liderança e participação ativa do centro, da direita, dos liberais e dos socialistas”.

Por tudo isto apenas podemos concluir que a extrema-direita está a vencer o debate sobre a imigração na Europa, quer a nível nacional quer na União Europeia, vendo as suas ideias serem aprovadas e crescendo sistematicamente nas intenções de voto. Isto é feito através da captura das agendas dos partidos da direita e do centro, que apesar nas cedências não beneficiam em termos eleitorais, parecendo os eleitores preferir o original em detrimento da cópia.

A poucos meses das eleições para o Parlamento Europeu, e num ano em que teremos eleições legislativas que afetarão uma grande parte da população mundial, podemos verificar que a extrema-direita está a vencer a questão da imigração na Europa, sendo em muitos destes países indiferente o voto nela ou nos partidos de direita conservadora, de direita neoliberal, do centro-direita, de alguns partidos do centro-esquerda ou até em determinados novos partidos de uma esquerda conservadora, surgidos de cisões, como é o caso da Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) na Alemanha. Só um voto em partidos da esquerda progressista, humanista, socialista, radical, revolucionária e internacionalista poderá inverter este retrocesso cultural, democrático e humanitário.