A generosa ideia de utopia atravessa toda a literatura. No século I antes da nossa era comum, Virgílio escreveu sobre a Arcádia, onde se viveriam amores intensos em bosques frondosos, entre amáveis ninfas e tocadores de flautas; pouco depois, um autor de que se sabe pouco, Iâmbulo, imaginou a Ilha do Sol, habitada por “homens bons” de dois metros, que viveriam 150 anos, numa sociedade perfeita, sem propriedade, sem doenças, o casamento tinha sido abolido. A ideia foi retomada, mais de mil e quinhentos anos depois, pelo livro de Thomas More, “Utopia”, que fundou um novo género literário e foi lido em toda a Europa.
More concebeu também uma ilha, era mais fácil imaginar uma sociedade distante, governada por uma assembleia anual com três cidadãos de cada cidade, que discutiria cada assunto por três dias, para evitar precipitações Mas o que encantou quem leu o livro foi a promessa comunitária: trabalhava-se seis horas por dia, havendo duas de sesta e sendo reservadas oito para o sono. A economia era estritamente planeada: a roupa de trabalho duraria sete anos, a roupa do dia a dia dois; as famílias mudavam de casa de dez em dez anos, por sorteio. Nos hospitais o tratamento era garantido e a eutanásia era permitida. Os refeitórios eram públicos. As famílias recebiam o que necessitavam, indo recolher gratuitamente os bens a um armazém, dado que a prosperidade era assegurada pelo trabalho dos escravos. Não haveria pagamentos em moeda e a ostentação do ouro seria desprezada, sendo tratada como um símbolo ridículo só usado por idiotas. As mulheres poderiam ser militares e sacerdotisas; aprenderiam ofícios como os homens; não haveria casamento antes que a mulher chegasse aos 18 anos e os pretendentes mostravam-se nus um ao outro antes das núpcias, para que o contrato de casamento fosse aceite; o divórcio era possível por “incompatibilidades de temperamento”. Na ilha, o “prazer é a maior parte da felicidade”, baseado no “deleite natural” do corpo e do espírito. Seria portanto uma sociedade igualitária, que o narrador, o português Hitlodeu, contrastou com as nações europeias, onde “não vejo senão uma enorme conspiração dos ricos para alcançarem o seu próprio bem”, pois “que justiça haverá quando um rico ourives, um usurário, em suma, aqueles que nada fazem, ou que apenas produzem o desnecessário e o supérfluo, têm uma vida agradável e boa, no ócio ou numa tarefa fácil, enquanto os pobres trabalhadores, carroceiros, ferreiros, carpinteiros e lavradores se esforçam, de um modo que os animais de carga não suportariam, executando, no entanto, um trabalho tão útil que sem ele a comunidade nem um ano se aguentaria”.
Do papel para a vida
No século XIX, os socialistas utópicos procuraram criar as suas próprias ilhas utópicas. O mais destacado, o industrial Robert Owen, promoveu os direitos operários na sua fábrica em New Lanark e, em 1824, comprou a pequena cidade de Harmony, nos Estados Unidos, para criar uma comunidade. As horas trabalhadas seriam trocadas por bilhetes de crédito na loja onde se iria buscar os bens de consumo; a educação das crianças seria pública; a propriedade privada seria abolida, bem como a igreja e o casamento. Ao fim de quatro anos, New Harmony morreu. Em 1832 criou um bazar de troca direta em Londres, por pouco tempo. Fracassou em tudo e arruinou-se.
Os utópicos franceses tiveram menos envergadura. Os partidários de Saint Simon, depois da sua morte, estabeleceram oficinas de sapateiros e alfaiates nas colinas de Paris. Sem efeito. Foi o terceiro destes utopistas, Charles Fourier, quem mais escreveu sobre o detalhe da proposta dos seus falanstérios, cooperativas que, ao contrário de outras utopias, mantinham a propriedade privada, mas organizavam a vida em comum. A sua proposta da “associação doméstica-rural”, ou falanstério, determinava os uniformes e escalas de trabalho (podiam mudar de função oito vezes por dia), o mobiliário das creches, as cores dos edifícios, o emparelhamento dos casais, a culinária, a hora do fecho das luzes. Os pagamentos seriam feitos sob a forma de dividendos na proporção do trabalho realizado, do capital e do talento de cada pessoa.
Fourier acompanhou a criação dos dois primeiros falanstérios. A primeira tentativa foi num terreno perto de Paris e durou entre 1832 e 1833. Fourier nomeou-se diretor-gerente e procurou angariar quatro milhões de francos por venda de ações, planeando a instalação de 600 pessoas, o que depois foi reduzido para 150. No entanto, a terra era improdutiva, faltaram os voluntários e a sociedade faliu. A segunda tentativa também foi frustrada: instalaram-se 50 pessoas num terreno na Roménia, mas a iniciativa foi rapidamente proibida. Fourier não acompanhou mais nenhuma experiência e, pouco depois da sua morte, foram criados dois falanstérios nos Estados Unidos, em New Jersey e em Massachusetts, que ao fim de cinco anos também tinham fracassado. Houve mais duas dúzias de falanstérios nos EUA que, como as comunidades utópicas de Owen, se extinguiram.
Também Etienne Cabet foi para os Estados Unidos fazer várias tentativas de criar cidades utópicas. Em 1847, um grupo dos seus seguidores viajou até ao Texas, onde passou alguns meses, mas a insalubridade do clima desanimou-os e desistiram. Dois anos depois, o próprio Cabet atravessou o Atlântico e foi com 485 colonos para Nauvoo, ma cidade mormon abandonada no Illinois. A comunidade perdurou seis anos, findos os quais o seu fundador foi afastado, acusado de autoritarismo. Finalmente, Flora Tristan não teve tempo nem recursos para tentar concretizar os seus “palácios operários”. No entanto, descreveu-os em detalhe, explicando a sua arquitetura, quem e como os deveriam construir, o funcionamento dos alojamentos, oficinas, escolas e salas de exercício e a estrutura de diretores, entregue a três a sete “homens mais capazes”.
Nos Estados Unidos houve outras experiências comunitárias, geradas por dissidências religiosas. A mais duradoura – e mais famosa – foi a de Oneida, no estado de Nova Iorque, fundada em 1848 por cristãos “perfecionistas”, que se prolongou por trinta anos. O seu líder, John Noyes, definiu os mandamentos de uma “Bíblia comunista” que organizavam coletivamente o sistema produtivo e “casamentos complexos”, que permitiam que todos os membros da comunidade se considerassem casados uns com os outros e, assim, vivessem um regime de partilha sexual, embora qualquer contacto tivesse que ser aprovado pela direção. A pressão exterior e dissidências internas acabaram por encerrar a comunidade.
Muitas tentativas, tantos fracassos – foi por isso que Marx e Engels, no seu Manifesto de 1848, constataram que as utopias se tinham desvanecido por rejeitarem “toda a ação política” mesmo quando reconheciam a oposição entre classes, pelo que, acrescentaram lugrubemente, as suas ideias se iriam desvanecendo no sentido inverso do crescimento da luta social.