A democracia representativa sofre, no século XXI, uma crescente incapacitação às mãos das oligarquias, do capitalismo de vigilância e do populismo. Campanhas como as de Trump e Bolsonaro provaram a eficácia quer do uso das redes sociais em si (como o uso de grupos de Whatsapp para a propagação da propaganda política no Brasil), quer dos dados extraídos da utilização das redes sociais (como no caso da Cambridge Analytica) para manipulação eleitoral . Já para não falar da decisão do Supremo Tribunal americano no caso Citizens United – que deu capacidade sem precedente aos grandes grupos económicos de influenciar a política – da forma insidiosa como a Uber influenciou os governos europeus a adotarem legislação que a favorecia ou do terreno que o lobbying tem conseguido ganhar
dentro da UE para impactar as diretivas europeias.
A capacidade democrática de uma sociedade não é nem nunca foi apenas medida por eleições livres. A democracia universal representativa, com todos os seus avanços, consolidou-se como forma de criar um sistema com regras a partir das quais todos temos o mesmo poder eleitoral, mas no qual as desigualdades materiais e a acumulação de riqueza sempre tiveram um papel importante. Mas mesmo antes do voto universal já havia formas de participação democrática – muitas vezes utilizadas à força – que demonstravam que num sistema capitalista dividido entre burguesia e operariado, entre quem detém os meios de produção e quem detém a força de trabalho, um dos maiores instrumentos de democracia é o bloqueio do processo de produção.
Num formato rudimentar, a ação coletiva de recusa de trabalho tem algumas origens pré-industriais, mas na sua concepção pós-feudal a greve era uma ação direta, disruptiva e ilegal que pretendia pôr em cheque a burguesia ao interromper a produção e o lucro até que os patrões cedessem às reivindicações dos assalariados. O seu uso enquanto ação coletiva dos trabalhadores começou durante a Primeira Revolução Industrial derivada das condições subhumanas de trabalho em cidades como Paris ou Londres, mas a sua popularidade só aumentam verdadeiramente com a instituicionalização do direito à greve e sua consequente legalização.
Este processo de legalização nunca foi feito sem uma oposição reacionária de quem via na interrupção da produção um prejuízo e de quem se opunha à organização coletiva do trabalho e ao movimento dos trabalhadores. Em França, o código penal de Napoleão datado de 1810 proíbia expressamente a greve com pena de prisão e a sua legalização parcial só foi permitida em 1864. No Reino Unido, a outra grande potência industrial do século XIX, o direito à greve só foi reconhecido legalmente já no século XX, em 1906. A greve sofreu até oposição de Proudhon dentro do movimento socialista, que se opunha ao seu caráter coercivo e confrontativo, preferindo antes uma abordagem reformista à emancipação dos trabalhadores.
Desde a sua popularização, a greve tem servido como instrumento de democracia. Não só na procura de melhores condições para os trabalhadores mas também como sinal de insatisfação popular e combate aos avanços ideológicos, económicos e políticos do fascismo e do capitalismo. É o caso das greves gerais do Reino Unido em 1926, das greves dos trabalhadores do aço e da ferróvia nos Estados Unidos entre 1919 e 1922 ou das grandes greves de 1936 em França, que espelharam a desvalorização dos trabalhadores no rescaldo do crescimento económico exponencial da Segunda Revolução Industrial.
Em Portugal, com uma economia debilitada e a indústria atrasada, as greves foram um sinal da ingovernabilidade da Primeira República, com a primeira greve geral a acontecer em 1911, depois novamente em 1912, também em 1917 em plena Primeira Guerra Mundial e em 1918 já com o regime de Sidónio Pais. Com a ditadura do Estado Novo as greves, embora violentamente reprimidas, não deixaram de acontecer.
No final dos anos sessenta e início de anos setenta uma nova vaga de greves, entre elas as dos mineiros no Reino Unido em 1972, a dos correios nos Estados Unidos em 1970, dos agricultores italianos em 1972 e talvez mais notavelmente as greves gerais no seguimento do Maio de 68 em França, davam sinal do descontentamento popular que se aglomerava no final dos Trinta Gloriosos e que pioraria com as crises de petróleo em 1973 e 1979.
O Maio de 68 traz um contributo particularmente interessante à ideia da greve enquanto instrumento democrático. É que para além uma greve geral que chegou a dez milhões de trabalhadores, estes queriam, como afirma Mandel contra o PCF, “ir além de uma simples campanha rotineira «por salários e boas eleições»”. Para além dos direitos laborais, o Maio de 68 compreendia a disputa pela libertação sexual – que, aliás, havia sido a faísca que acendeu o fósforo – a oposição à guerra do Vietname, e o descontentamento com o regime gaulista e a sua expressão teve sucesso de tal modo que De Gaulle se viu forçado a sair do país e a convocar novas eleições.
Ainda hoje, as greves continuam a fazer parte do sistema democrático e muitas vezes se referem a mais do que apenas ao trabalho. É o caso das greves na saúde, na educação e nos transportes em Portugal, que atestam à incapacidade de resolver problemas estruturais nos serviços públicos. Ou o caso da greve
de argumentistas e atores em Hollywood, que procuram um enquadramento legal para o uso da inteligência artificial no contexto profissional que os proteja.
O enfraquecimento do sindicalismo tradicional e a generalização da precariedade laboral têm colocado obstáculos à função da greve enquanto instrumento democrático e isso é particularmente evidente, por exemplo, no caso dos trabalhadores de plataformas. O neoliberalismo é possivelmente o maior golpe desferido ao direito à greve nas democracias ocidentais até hoje, e embora algumas formas de organização alternativas como as mobilizações de precários, o May Day ou a Greve Feminist Internacional tenham dado passos interessantes na reconfiguração de uma ação coletiva laboral, a verdade é que essa fragilidade define hoje a capacidade de transformação social da greve e do movimento sindical.
É preciso notar, no entanto, que a greve conseguiu afirmar-se enquanto ferramenta democrática no coração de uma sociedade industrial dominada pelos interesses da burguesia. O seu impacto era tanto que, contrariamente a esses interesses, ela foi legalizada. Conseguiu afirmar-se contra o fascismo como um ato de resistência, mesmo face aos seus instrumentos repressivos. E isso demonstra que ainda é uma das ferramentas mais resistentes e potentes de democracia que temos à nossa mão.