A ilusão punitivista

O punitivismo é a doutrina naturalizada de que a um crime (ou falta) deve corresponder um castigo. Representa uma aproximação a uma ideia de justiça muito enraizada histórica e culturalmente, como explica Foucault em Vigiar e Punir, própria do senso comum, razão pela qual tantas vezes não lhe é dispensada muita atenção crítica. No entanto, a ideia de justiça do punitivismo é de matriz vingativa, exatamente porque, num movimento mecânico, faz corresponder ao crime (ou falta) uma pena, que entende como castigo e não como reparação. Trata-se, por isso, de uma perspetiva vingativa e moralista, mas que se apresenta, tantas vezes, como panaceia para compreender e responder aos problemas sociais.

Entendendo o senso comum como uma ferramenta fundamental do saber viver, como um primeiro nível de conhecimento, percebemos, neste enquadramento, que o punitivismo é uma aproximação à realidade tranquilizadora, uma vez que, simplisticamente, favorece a ideia de segurança, ao sentenciar que a cada crime (ou falta) corresponde uma punição e que as fronteiras entre o bem e o mal são indiscutíveis e estáveis. Mas o punitivismo, ou a mentalidade punitivista, manifesta-se em vários territórios da vida social, da produção legislativa à produção da alternativa. E é sobre este salto da ordem do senso comum para o campo das leis e das propostas políticas que, creio, devemos deter a nossa atenção e exame crítico. Quais são os efeitos de uma mentalidade punitivista na proposta política? A que mundos futuros nos conduz a doutrina punitivista? A quem serve o simplismo punitivista?

Como refere Angela Davis, as práticas penais punitivistas conduzem ao aumento da população carcerária, mas não à diminuição do crime. Por isso é legítimo perguntar se faz sentido ter como horizonte o encarceramento ou se, pelo contrário, nos devemos deter nas razões que estão na origem do crime. Do mesmo modo, se nos detivermos nas penas como mecanismo que serve apenas para castigar ações pretéritas e dispensarmos as ideias de reparação e reabilitação, estamos a favorecer perspetivas preformistas anacrónicas e cientificamente desacreditadas e a aceitar que existem pessoas intrinsecamente boas e pessoas intrinsecamente más, que é precisamente o argumento que, levado ao limite e combinado com uma ideia de justiça como vingança, torna, por exemplo, aceitável a pena de morte.

Na produção legislativa e na produção de alternativa este viés punitivista tem-se manifestado. Creio que é uma resposta fácil e preguiçosa aos problemas, mas, mais importante, falaciosa. Vejamos o exemplo da violência doméstica. Desde 2000 que a violência doméstica é crime público, o que contribuiu enormemente para o modo como, enquanto sociedade, desnaturalizamos e aprendemos a reconhecer comportamentos violentos. Todavia, ano após ano, os relatórios de segurança interna (RASI) não mostram alterações significativas na prática do crime. Face a isto, a resposta tem sido quase exclusivamente construída a partir do Código Penal e do mantra do aumento das molduras penais. Creio que isto nos deve suscitar duas reflexões principais, uma mais pragmática, outra mais política. Do ponto de vista pragmático, parece sensato dizer que responder a problemas sociais com o Código Penal não nos tem levado muito longe. Do ponto de vista político, entendo esta estratégia como um engodo liberal, exatamente porque não transforma as relações sociais e de poder, mas cria a ilusão de que se está a fazer alguma coisa. É uma resposta burocrática, sem compromisso e ilusória, mas o problema reclama, em meu entender, uma resposta bastante diferente. Reclama boas leis, evidentemente, mas reclama respostas que exigem mais Estado social e não mais Estado penal. Por exemplo, nenhuma estratégia de combate à violência doméstica e de género pode ser tomada como séria, se não for acompanhada por políticas salariais e de habitação. Falhando estas respostas, as vítimas permanecerão vítimas, porque não têm condições de romper com o contexto de violência, ou entregar-se-ão nas mãos de um Estado assistencialista e insuficiente na emergência, mas ausente no resto dos dias. E nenhum aumento de molduras penais responde a este problema.Angela Davis fala-nos da dificuldade de imaginarmos um mundo sem prisões para lidarmos com situações de conflito e da ilusão do punitivismo. É um exercício exigente, mas que vale a pena fazer, porque nos permite olhar criticamente para o que nos habituamos a aceitar sem exame e perceber, no processo, o punitivismo como caldo de cultura populista e estratégia liberal de fingimento. Responder aos problemas e transformar as relações sociais e de poder exige muito mais do que boas leis; sobretudo, não exige leis castigadoras, mas reparadoras e reabilitadoras. E a responsabilidade da esquerda não é o fingimento, mas a transformação.