O filme Pride, saído em 2014, é um bom ponto de partida e uma boa sugestão de revisitação, numa altura em que as políticas do medo tendem a surgir como motores fundamentais de uma generalizada discussão em torno da “segurança”. Trata-se de um relato ligeiro e bem-disposto do encontro inesperado entre duas realidades sociais, que convergiram na luta social contra a governação de Margaret Thatcher. O filme permite acompanhar peripécias do contacto, da desconfiança vencida e da mútua aprendizagem entre grupos mineiros da Grã-Bretanha profunda e de ativistas londrinos/as LGBTQIA+, ficcionando a partir de uma situação real, nos terríveis anos que a enquadraram.
Para além do entretenimento, para lá da eficácia narrativa, Pride corresponde a um processo que contraria intrinsecamente uma das traves-mestras do extremismo neo-liberal. Quando a preponderância discursiva e política apontava para um individualismo em que, na célebre proclamação de Thatcher, “there’s no such thing as society”, quando o medo legitimava a competição e apontava o caminho à própria guerra, culturas ativistas aparentemente irredutíveis souberam construir pontes e gerar organização popular. A solidariedade entre mineiros e ativistas LGBTQIA+ era desde logo uma pauta de relação e de ação coletiva, um restabelecimento de esperança capaz de contrariar o divisionismo, a competição e o próprio ódio. Torna-se claro que aí, onde o medo é vencido, abrem-se possibilidades a uma sociedade convivial, dialogada e diversificada, onde toda a segurança e toda a paz se configuram a partir de direitos, de salário, de perspectivas de reconhecimento e de futuro. Nenhuma segurança se estabelece, realmente, nas fraturas entre as pessoas e nos contextos policiados ou de repressão, os ativistas queer sabiam-no e deram o corpo ao manifesto, os ativistas sindicais aceitaram a diferença, mas principalmente, lutaram pelo que os unia.
A construção coletiva é segura e não securitária. Nenhuma arma proporciona uma paz duradoura. A justiça sim, como nos lembrou o José Soeiro em janeiro a propósito da pedra fundacional da OIT. Eis os primeiros pressupostos contra o medo.
Contextos institucionais de “segurança”
Há correlatos institucionais importantes, no que concerne a paz e a segurança. Históricos frequentes, na abordagem a políticas públicas construídas nos desígnios – por demais imperfeitos, mas nem por isso de menor relevo – das várias versões de Estado Social no imediato pós-guerra.
O retrato da devastação social mostra-nos o resultado do inominável do conflito armado, mas também as situações de injustiça que o favoreceram à partida. Depois da II Guerra Mundial, pintado o retrato de uma sociedade marcada pela desigualdade e pela desesperança, era preciso construir formas de redistribuição e acessos mais generalizados a direitos sociais, para que o flagelo maior, mais devastador e mais impensável não pudesse repetir-se. O desenho de um modelo social europeu, concretizado em Estados Sociais mais fracos ou mais fortes, mais sólidos ou mais vulneráveis, era a imagem de uma forma desmilitarizada de segurança, que se afirmava como plataforma mínima para a construção de políticas sociais consequentes. Em cenários globais de enorme desequilíbrio, em contextos internos de cruas e implacáveis formas de desigualdade, os países europeus faziam da ideia do que aparentava ser a paz duradoura uma das traves-mestras da sua identidade.
Na verdade, este consenso não se revelou apenas mínimo, parcial ou decorativo. Por trás dele, com maior ou menor discrição, uma noção de segurança alicerçada no pressuposto da paz deriva ao sabor dos interesses e das oportunidades, dando espaço à imposição securitária. Hoje, de forma crescente e quase indisputada, uma imposição securitária, nutrida pela lei do poderio militar, projeta-se no espaço público como uma prioridade tornada indiscutível. Tudo se passa como se não fosse possível perguntar de que falamos, de que políticas falamos e de que sociedades falamos quando algo como a “segurança” força o seu lugar no palco das grandes decisões.
O acelerar do medo
A segurança está na ordem do dia, sendo hoje uma das palavras e conceitos mais mobilizados politicamente. Fruto de um mundo em Guerra, a ideia de segurança é tida como a resposta ao medo da invasão que está por vir, das guerras e do terrorismo que paira nos imaginários dos povos, mas também como reação ao medo do conflito, das pessoas e do desconhecido. Vivemos num tempo que mobilizou a insegurança como arma de opressão e consentimento. Como temos medo, permitimos a videovigilância; como temos medo aceitamos a utilização de drones e de dispositivos de atropelo da individualidade, da privacidade e cavalos de tróia de invasões; como temos medo aceitamos a sociedade policiada e a lei do bastão. O medo é justificativo para uma higienização das cidades que não pode ser confortável para corpos estranhos, não produtivos, que compõem a franja dos esquecidos do modo de produção capitalista. É imperativo sublinhar que mulheres, crianças, imigrantes, idosos, deficiência, pessoas em situação de sem-abrigo, pessoas pobres fazem parte dessa margem. Este espaço é desconfortável para toda a gente que se desvia do ciclo casa-trabalho-casa. Por causa do individualismo, do isolamento e da falta do confronto saudável entre diferentes ficamos seguros apenas em espaços controlados, que provocam insegurança precisamente porque retiram vivência e comunidade aos espaços do nosso quotidiano. Tudo parece ter perdido proximidade, familiaridade e capacidade de acolhimento da diferença.
Estar à defesa
Entretanto, a conjuntura securitária vai garantindo lucros significativos a empresas privadas, com crescentes garantias públicas a atividades empresariais de natureza policial e militar. A pressão para o incremento orçamental na defesa não mascara tais motivações, mas é hábil em convertê-las em prioridades de agenda.
Não é de agora a pressão internacional para o aumento dos gastos com a defesa. Por mais que uma pretensa “tempestade perfeita” encontre, de Trump a Putin, justificações imperiais para uma espécie de mudança abrupta de orientação, a verdade é que já há muito se faziam mover os interesses, encobertos pelo amplo chapéu da “segurança”. Entre 2021 e 2027 – de acordo com o relatório “At what cost? Funding the EU’s security, defence, and border policies” – previa-se já um aumento de nada mais nada menos que 123% do orçamento generalizado relativo à segurança, nos seus vários segmentos. Trata-se de um grande chapéu, onde se incluía o fortalecimento das polícias de fronteira, a repressão dos fluxos migratórios e custos de externalização de fronteiras, para além dos vários setores que envolvem a indústria militar. O dinheiro dos contribuintes europeus serve, desta maneira, a ação repressiva da FRONTEX, nas linhas costeiras da Europa-fortaleza, ao mesmo tempo que reforça o complexo militar industrial, favorecendo uma vez mais os interesses do eixo franco-alemão. Também a Transição Verde, que traz consigo a ideia de uma transição gémea – digital e energética – avança com a identificação dos setores com uma via-verde para a exploração de materiais críticos – mineração – onde desenvolvimentos tecnológicos em drones e o setor da defesa aparecem como estratégicos. À boleia da transição climática, onde não haveria de ter lugar, a máquina de guerra e da perseguição desbrava caminho, a par da mineração. Ela impõe lógicas de despossessão e deslocações globais forçadas, que a FRONTEX policia e expulsa através de métodos que são considerados ilegais até aos olhos da legislação europeia atual. Trata-se de uma segurança insegura para milhões de pessoas, tanto nos seus países como nas deslocações a que se vêm obrigados.
À vontade do freguês
Uma ideia securitária e militarizada de segurança era vendida como se fosse uma espécie de inevitabilidade – uma imposição fatalista e intransponível, em modelos que já conhecemos pelo menos desde os tempos da Troika. O reforço da ideia favorece a direita musculada, impondo a sua narrativa securitária como se fosse a única possível.
Trata-se do que, em ensaio recente, Elsa Dorlin denuncia como uma forma viril de cidadania, a partir da qual uma “cultura defensiva”, generalizada à sociedade civil, faz da violência e da sua preparação a única forma viável de perpetuação de segurança. Entretanto, é a própria “defesa da segurança” o termo móvel e oportunista, que tanto serve a retórica da “autodefesa” para justificar a sangria genocida do sionismo, como serve para fazer soar os alarmes europeus quanto à necessidade de construir arsenais para combater, potencialmente, um inimigo fantasmático. A “defesa” globaliza-se via NATO, instituindo o predomínio de uma ideia de segurança cada vez mais monopolizada pela máquina militar. A defesa é o ataque, a segurança é a vigilância, as armas correspondem à eliminação do primado do direito. Defendem-se genocidas e atacam-se pretensos terroristas pelo que tem vindo a ser cunhado “Direito Penal do inimigo”, em que extradições ou até rusgas ocorrem por correlações não comprovadas, baseadas em preconceitos para com nacionalidades ou territórios. Utilizam-se argumentos e subterfúgios que parecem “impossíveis” de comprovar, alegando-se simplesmente “direito de defesa”. Não se necessita mais que uma alegação ténue para justificar penalizações de extradição sem julgamentos ou rusgas indiferenciadas sem evidência.
A estratégia, uma vez mais, não é nova – remete, por exemplo, para os atentados terroristas, quando usados como justificação para atos de guerra, frequentemente ao arrepio do Direito Humanitário Internacional. Que segurança é possível, quando se usa o direito para provocar insegurança – de posse, de cidadania, de defesa própria ou de vida?
Cortinas de fumo
Quando se fala de segurança o imaginário e as políticas remetem para a ideia de defesa, para a tecnologia armamentícia e para o militarismo. Exemplo disto mesmo é o modo como o inefável Mark Rutte, secretário-geral da NATO, vem sendo o porta-voz de uma imposição do aumento de percentagem dos Orçamentos de Estado nos gastos com a defesa. O seu poder autoritário reduz o debate em torno da defesa a uma questão meramente numérica, impondo um aumento percentual significativo nos gastos sobre a defesa, sem que o critério desses gastos ou o destino dessas quantias seja revelado ou debatido. É o sintoma de um efeito de despolitização, que encara o aumento de gastos numa paz assente na força das armas, como se esta paz fosse a única possível e desejável.
Igualmente opaco, claro está, é o impacto de cada uma destas percentagens de gastos sobre o já depauperado Estado Social. Os efeitos do seu enfraquecimento são já visíveis, danos colaterais de um cenário que cresce progressivamente sob os nossos olhos: abandono e desproteção social, aumento de desigualdades e agravamento das condições de proliferação da extrema-direita.
Do securitário à segurança
Quando uma exigência de reforço de orçamentação da defesa alimenta um fortalecimento desproporcionado da chamada mão direita do Estado, feita de vigilância securitária contra a redistribuição e a justiça social, adivinha-se o triunfo do securitário contra a segurança.
A noção de segurança não se pode desligar de segurança alimentar e ambiental – desafiada pela exploração com fins energéticos, nomeadamente extração de Gás, mas também pela insegurança provocada por novas formas de extrativismo para a já referida transição “verde” que provocam, em Portugal, a inutilização de terrenos agrícolas com grandes indústrias de produção ou através de grandes explorações de extração de lítio. No Estado de exceção permanente, a que nos temos condenado, tudo é justificado pela presença de um suposto perigo constante: de uma pandemia, de uma guerra, de um assalto, de uma violação. Mas o que de facto ocorre é que os perigos que atravessamos se nutrem especialmente da falta de salário, da ausência de habitação ou de apoio médico, da falta de dinheiro para pagar a propina ou para chegar desafogadamente ao final do mês e dos perigos que as alterações climáticas trazem a cada vez mais vastos territórios. A falta de segurança, aquela que é realmente partilhada, coletivamente combatível e global, surge da ausência de perspetivas de uma vida digna, de uma vida boa, isso não se resolve com armas ou drones.