Uma das mais conhecidas frases associadas ao futebol inglês é, como afirma o historiador britânico David Goldblatt em The Game of Our Lives: The English Premier League and the Making of Modern Britain (2015), de autoria de Sir Richard Turnbull, que “quando o império britânico finalmente fosse afundado pelas ondas da história, ele deixaria para trás apenas dois monumentos – um era o futebol e o outro a expressão “Fuck off” (em tradução livre). Com a devida licença poética, é o tipo de frase que nos ajuda a compreender o tamanho do impacto gerado pelo futebol na sociedade inglesa e, em tempos marcados pelo imperialismo e expansão global do império britânico, no mundo.
Se é certo que se sabe que a maioria das civilizações antigas jogou alguma espécie de “proto-futebol”, é na Inglaterra, em meados do século dezenove, que nasce a versão moderna do jogo, com o estabelecimento de regras que o iriam separar do rugby, tais como a proibição de tocar com a mão na bola, estabelecidas pelos códigos de Cambridge e Harrovian ainda em 1863.
Quando se olha para o surgimento do futebol moderno no contexto inglês, ainda que nos primeiros anos fosse um jogo para as elites, jogado e assistido por gentlemen, uma série de fatores como o aumento dos salários, o aumento no número de trabalhadores que passaram a ganhar folgas de meio período aos sábados e o interesse da burguesia no jogo o transformaram em um passatempo barato e cada vez mais popular e não mais restrito às camadas abastadas inglesas. Contudo, como afirma David Russel em um capítulo de Football Cultures and Identities (1999), “o rótulo de “Esporte do Povo” associado muitas vezes ao futebol inglês, mas raramente questionado, descreve padrões de consumo e não padrões de controle.” Para Russel, a manutenção do controle do esporte por parte das elites tem a ver com o fato de que “os torcedores são muitas vezes muito viciados no jogo para ameaçar as estruturas que o sustentam, além de uma parcela da classe trabalhadora que trata o jogo muito como trata estruturas políticas e sociais mais amplas, como algo a ser tolerado e manipulado para atender suas necessidades e não algo a ser derrubado”.
Por mais que seja possível notar nesta análise uma grande influência das teorias originadas na Escola de Frankfurt – uma corrente que enxerga o futebol como uma ferramenta de reprodução dos interesses da classe dominante que canaliza a energia potencial das classes populares, impedindo, assim, qualquer tipo de resistência por parte delas – é possível compreender o ponto defendido por Russel, sobretudo quando se olha para os padrões de consumo e controle apontados por ele.
De fato, por mais que seja largamente consumido por camadas populares, o futebol é um jogo que ainda pertence às elites. Hoje, não mais à aristocracia vitoriana e nos campeonatos universitários do século dezenove, mas às elites financeiras neoliberais que enxergam no esporte apenas mais uma forma de gerar lucro, custe o que custar. Cada vez mais, fundos multinacionais adquirem clubes, patrocinam equipes e campeonatos, tendo como objetivo primordial a exploração máxima das receitas e dos orçamentos, com pouca ou nenhuma consideração por aqueles que investem suas próprias vidas por essas agremiações.
Em Manchester, tanto o lado vermelho quanto o lado azul da cidade são exemplos desta dinâmica. O Manchester City, fundado em 1894, foi comprado pelo sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, em 2008. Através da injeção de dinheiro que veio do Abu Dhabi United Group, o clube se tornou uma potência esportiva e financeira, sendo o atual tetracampeão inglês e campeão mundial. Do outro lado da cidade, o Manchester United viu a família Glazer aumentar a sua porcentagem do clube de 3.17% em 2003 ao domínio total do clube, através de diversas ofensivas financeiras. Ambos os clubes hoje servem a interesses estrangeiros, seja um caso típico de sportwashing no caso do City, ou um exemplo “clássico” de domínio neoliberal no caso do United.
No século XXI, os dois experimentaram a sensação de estar no topo do campo esportivo, mas o preço cobrado por isso veio na forma de um distanciamento da base “tradicional” dos torcedores ligados a eles. Existe uma argumentação que liga esse distanciamento ao processo vivido pela própria cidade de Manchester nos anos noventa que, sendo tradicionalmente industrial, observou uma viragem para o setor financeiro cujos dois principais resultados foram uma explosão de investimentos e um processo de gentrificação galopante.
No contexto dos Diabos Vermelhos, em 2005, após a venda do clube para Malcolm Glazer, torcedores decidiram criar um novo clube, não se reconhecendo naquilo pelo qual sempre torceram. Nascia, então, o Football Club United of Manchester. O caso não era inédito, em 2004 torcedores do Wimbledon fundaram um novo clube após a transferência do tradicional clube londrino para a cidade de Milton Keynes. Em 2008, torcedores do Liverpool se organizaram e criaram o sindicato Spirit of Shankly, que reunia torcedores descontentes com a gestão de Tom Hicks e George Gillet, cujo nome homenageia o lendário treinador dos reds Bill Shankly, figura revolucionária, autor de duas célebres citações que inspiram os torcedores até hoje: “O socialismo em que eu acredito é em todos trabalhando um pelos outros, todos com uma parcela das recompensas. É a forma que vejo o futebol, a forma que eu vejo a vida.” e “Algumas pessoas acreditam que futebol é uma questão de vida ou morte. Eu fico muito desapontado com essa atitude. Eu posso garantir que é muito, muito mais importante do que isso.”
Enquanto isso, uma esfera muito comum no campo dos estudiosos das ciências sociais do esporte e daqueles que discutem e analisam o futebol enquanto fenômeno social é aquela que pode ser descrita como “apocalíptica”. É uma corrente defensora de que não há nada que possa ser feito para colocar em xeque o controle da elite sobre o jogo e as massas populares, o futebol é mais um “ópio do povo” e os torcedores estão fadados a serem meros peões alienados, cegos pela paixão e pelo vínculo clubístico.
De fato, os ingressos são mais caros do que nunca e o acesso é cada dia mais restrito. Mesmo as transmissões televisivas, outrora percebidas como um portal de democratização do jogo, hoje são cada vez mais exclusivas e, ao pulverizar entre si a exibição das partidas, retira ao trabalhador a oportunidade de acompanhar sua equipe. Estádios históricos, palco onde os “torcedores peregrinam para esse lugar onde podem ver, em carne e osso, seus anjos duelando contra os demônios da vez”, citando novamente Galeano, tem seus “naming rights” vendidos para empresas e passam a se distanciar cada vez mais daquilo que um dia foi, para utilizar o conceito de Pierre Nora, um “lugar de memória”.
A criação da Premier League na década de 1990 pareceu sedimentar a corrente neoliberal que varreu a Inglaterra na década anterior, tendo como símbolo máximo a primeira-ministra Margaret Thatcher, figura lembrada com desprezo pelos trabalhadores ingleses, inimiga dos sindicatos e das mobilizações populares e responsável pelo declínio da qualidade de vida da base da pirâmide de classes inglesa, para quem “there is no such thing as society”. Hoje, a liga mais rica do mundo tem clubes cada vez mais “multiétnicos”, caçando talentos pelo mundo e oferecendo salários e benefícios irrecusáveis. Ricos e poderosos, mas se distanciando das comunidades que os ergueu.
Contudo, exemplos como o Wimbledon, o United of Manchester e o Spirit of Shankly mostram que a guerra não está perdida. Uma força como o futebol, cujo potencial de transformar a realidade é gigantesco, não pode simplesmente “pertencer” a um grupo mega restrito de uma elite financeira global. Se não foi fundado por operários e trabalhadores, foi essa força que fez do jogo o que ele é hoje. Todas as semanas é essa massa que coloca tudo de si em prol do seu clube. A “única religião que não tem ateus”, nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano, não existiria se não fosse o seu apelo popular.
Muitas vezes, o futebol é compreendido como “reflexo” social, uma espécie de continuação das características sociais que o rodeiam nos mais variados contextos. Contudo, uma visão do jogo como “refração” pode produzir uma análise mais rica e aprofundada. O futebol não é uma sequência direta do seu entorno, mas o afeta e influencia ao mesmo tempo que é afetado e influenciado por ele. No caso inglês, como visto, trata-se de uma dinâmica complexa e que merece um debate aprofundado e crítico, mas é fundamental, ao fazê-lo, ter em mente que, mesmo nos prolongamentos, a vitória ainda é possível. O futebol é, e sempre será, uma força popular.