Se depositarmos demasiadas expectativas no consentimento, como se isso fosse salvar-nos de um sexo incómodo, desagradável ou até doloroso, estamos a idealizar uma ferramenta que não serve para isso. — Clara Serra
Os movimentos feminista e LGBTQIA+, que abriram brechas na moral sexual do passado, parecem estar agora na origem de novas normas sobre o desejo. É possível pensar a sexualidade e o trauma não como experiências privadas, mas como sintomas políticos, onde o poder se reconfigura e onde se decide o que é liberdade, o que é perigo, o que é cuidado.
Trauma como processo social
A violência sexual tem sido, com razão, um ponto central das lutas feministas. Mas o tribunal das redes sociais e a importação de processos e gramáticas dos EUA têm contribuído para transformar lutas coletivas em casos mediáticos sobre sofrimento individual.
Isto não significa que não devemos denunciar, escutar e empatizar com o sofrimento de alguém, ou que um caso individual não possa traduzir um problema estrutural. Mas reduzir o trauma à sua dimensão individual e inultrapassável, que remete sempre para si mesma, pode ser uma forma de despolitizá-lo.
O trauma não nasce com a vítima, mas com a forma como a sociedade integra o sofrimento na sua norma moral. A centralidade do trauma é também sintoma de uma época que transformou o sofrimento em capital simbólico e, portanto, em poder. Neste contexto, o espaço político tende a organizar-se em torno da competição por reconhecimento individual. O trauma deixa de ser uma experiência que exige transformação coletiva e passa a ser um selo de autenticidade.
Mas o trauma, enquanto processo social, é também produzido pela própria estrutura que o reconhece: as instituições, os media, os sistemas de justiça e os fenómenos das redes sociais. Cada um destes espaços cria a sua linguagem de validação e os seus mecanismos de empatia e/ou exclusão.
Trauma como identidade
Falar mais sobre trauma trouxe conquistas inegáveis: deu legitimidade a experiências antes silenciadas e criou novas formas de reconhecimento. Mas também trouxe uma armadilha, que se prende com a transformação do trauma em identidade política.
Quando o sofrimento se torna a principal fonte de autoridade moral, há o risco de a dor substituir o argumento. A vítima passa a ser portadora exclusiva da verdade, e quem introduz nuances é acusado de insensibilidade ou até cumplicidade. Esse deslocamento produz uma política das emoções que, embora possa ser justa na intenção, acaba a sufocar o debate político e a gerar um simulacro de ativismo assente no papel de vítima. Isto não significa, de forma alguma, que uma vítima não possa sentir emoções contraditórias e intensas, que não possa ter desejo de vingança ou de fazer justiça pelas próprias mãos. Significa, sim, que isso é um processo individual que não equivale a fazer política nem a produzir transformação coletiva.
A nossa tarefa, enquanto esquerda, não é duvidar do trauma, mas politizá-lo de modo emancipador. Isso significa compreender como ele se inscreve em relações de poder e como as respostas penais ou mediáticas podem perpetuar a dominação. O trauma precisa de ser reconhecido, mas também transcendido como categoria única de identidade. O objetivo é que a pessoa não seja reduzida ao seu sofrimento e que o seu sofrimento não seja perpetuado ou reforçado pela moral.
Os riscos de uma nova ordem moral
Temos debatido, recentemente, sobre os riscos sociais e políticos da nova ordem moral que se vem construindo e afirmando como alternativa à moral patriarcal. Discutimos por considerarmos que ela é, ou tende a ser, uma nova forma de autoritarismo e puritanismo, um novo idealismo que faz tábua rasa das pessoas reais e concretas e das suas condições materiais e psicológicas de existência. O “só sim é sim” é um exemplo de princípio dessa nova ordem moral que, sem exercício crítico, tem sido aceite e acolhido com entusiasmo por grande parte dos setores feministas e progressistas. Em nosso entender, ele espelha e é fonte de inúmeros problemas. Ao impor o consentimento explícito como imperativo ético, moral e judicial, está a dizer-nos que, para ser livre e ver a minha dignidade reconhecida, eu tenho de “saber sempre o que quero”, “dizer sim com toda a clareza”, “denunciar sem ambiguidade ou hesitação”. O que esta nova ordem moral nos impõe, em nome de um empoderamento idealizado, é, na verdade, uma impossibilidade, porque as pessoas reais têm fragilidades e debatem-se com hesitações e contradições.
A transformação da sexualidade numa grelha a preto e branco não elimina as zonas cinzentas, apenas as invisibiliza. O que não cabe no binarismo da nova (hiper)normatividade sexual não deixa de existir, e fazer de conta que não existe prejudica o próprio combate à violência sexual, transforma o sexo e a sexualidade num receituário e terraplana a diversidade que os movimentos feministas e LGBTQIA+ lutam há décadas por visibilizar.
A moral maniqueísta pode converter-se numa nova forma de repressão que lança um manto de suspeição sobre quem não consegue descrever o seu desejo, ou não sabe ainda o que deseja, quem sente prazer no interdito, quem não se encaixa na norma. O trauma não é só um processo para ser resolvido no ciclo abuso- trauma-castigo, é um efeito estrutural de um sistema que reprime corpos, provoca culpa por desejar, por dizer não, ou por dizer sim fora do enquadramento normativo.
O consentimento e as suas contradições
Num clima social em que o trauma está quase latente antes da experiência, em que a sexualidade é vendida como um campo minado para o qual se deve partir com a máxima precaução (para não nos tornarmos vítimas ou algozes), há uma predisposição para catalogar qualquer desconforto ou experiência fora da norma através dessa grelha de análise.
Clara Serra introduz uma nuance essencial neste debate: o consentimento, embora indispensável, não esgota a complexidade do desejo. Existe um risco em reduzir a sexualidade a um contrato jurídico de vontades claras e estipuladas a priori, que é o de eliminar o próprio campo do desejo, com as suas zonas de opacidade. Ninguém deseja no vácuo. O desejo raramente é transparente, e o poder impõe-se de formas contraditórias. Aquilo a que chamamos vontade é atravessado por medo, vergonha, desejo de agradar, feridas antigas, entre tantas outras coisas. Posso dizer não apesar de desejar e posso dizer sim apesar de não desejar. São ambos direitos que me pertencem apenas a mim. O facto de um sim surgir contra o desejo, o que poderá deixar um rasto de culpa, desconforto ou até trauma, não significa que exista necessariamente violência ou coação.
Também não significa que não exista. Mas a luta pela emancipação é também a luta pelo direito a tomar decisões (que até podem ser posteriormente consideradas erradas e suscitarem arrependimento) e a gerir livremente o desejo (ou a ausência dele).
A tentativa de regulamentar cada gesto, cada palavra, cada nuance do erotismo conduz à asfixia da própria sexualidade. A emancipação sexual exige repensar o consentimento não como contrato, mas como uma relação eticamente construída: um processo de comunicação, de aprendizagem mútua, de vulnerabilidade partilhada. Mudar a forma como aprendemos a desejar e a comunicar uns com os outros, sem culpas nem regulamentos. Isso implica uma política de cuidado, não de vigilância.
O impasse punitivista
No seu livro O meu corpo, este desejo, esta lei, Geoffroy de Lasganerie fala de como a política do trauma se transforma numa política de gestão penal da dor. O sofrimento, para o qual legitimamente se exige reconhecimento, é canalizado para um dispositivo jurídico que promete justiça, mas oferece sobretudo espetáculo, punição (dentro ou fora do tribunal) e, tantas vezes, um prolongamento do trauma e uma instrumentalização e objetificação das vítimas. Tantas vezes contra a sua própria vontade ou interesse, impondo a via penal como caminho único de enfrentamento e superação do trauma e prescrevendo uma espécie de guião de comportamento da “boa vítima” para que esta possa ser reconhecida e validada como tal. A insistência punitivista, além de ineficaz, tende a fortalecer essa mesma lógica. E há uma contradição inultrapassável na esquerda punitivista, a que Lasganerie chama “excecionalismo sexual”: por um lado, um discurso abolicionista, antipenalista, restaurativo, em nome da dignidade e do direito à reabilitação e reinserção de quem é condenado, desde que os crimes não sejam sexuais; por outro, um discurso drasticamente oposto, se a acusação implicar assédio ou violência sexuais, sufragando e participando em processos de humilhação pública e desumanização e exigindo privação de liberdade (penas de cadeia) como patamar mínimo de justiça.
Precisamos de pensar nas razões deste “excecionalismo sexual”, no porquê de o sexo alterar (contraditoriamente) a nossa cosmovisão, e de imaginar outras formas de justiça que não repliquem a lógica repressiva que criticamos.
Política do ressentimento
Quando a justiça sexual que se anuncia quer punir mais do que transformar, quer eliminar o ofensor mais do que transformar a sociedade que o produziu, quer higienizar as relações humanas para procurarmos em cada inter-relação uma infração, o resultado é um mal-estar sexual que facilmente se converte em ressentimento político: tanto no punitivismo progressista, que busca no castigo a sua catarse moral, como na reação que interpreta esse movimento como ameaça e humilhação.
Muitos jovens, confrontados com as gramáticas do novo puritanismo, percebem-nas não como convite à igualdade, mas como ataque identitário. A perda do monopólio do desejo masculino é sentida como expropriação e a frustração sexual encontra finalmente uma causa e um inimigo. Esse sentimento de perda prejudica a comunicação e o respeito no campo da sexualidade, assim como alimenta um cerrar de fileiras e uma defesa distorcida da “energia masculina” que tem resultado numa geração de jovens mais machistas do que os seus pais e avós. E os influencers de extrema-direita sabem bem surfar essa onda: oferecem ao jovem desorientado uma comunidade moral, onde a frustração se converte em identidade e o trauma dos outros é reinterpretado como ataque e censura.
Enquanto isso, a esquerda enreda-se nas próprias malhas que tem tecido, ao tentar responder ao trauma com normatividade. Esta cultura do trauma, porque é perspetivada como um sofrimento individual e impregnada de tiques liberais, é incapaz de criar solidariedade. Pelo contrário, atira-nos para a insanidade de uma competição e hierarquização do sofrimento. E é precisamente nesse terreno que o reacionarismo se alimenta e robustece: prometendo devolver aos homens uma identidade ferida e às mulheres uma segurança que as infantiliza.
O ressentimento não é apenas uma reação, é uma forma de subjetivação produzida pelo próprio neoliberalismo. Numa sociedade em que o sofrimento é medido pelo reconhecimento que recebe, o ressentimento torna-se a emoção coletiva de quem sente que perdeu o seu lugar no mundo, ou, pelo menos, o lugar em que se reconhecia. O ressentimento machista cresce quando a igualdade é apresentada como perda, quando a libertação de alguém é entendida como um ataque a outrem.
Ao mesmo tempo, no campo progressista, o ressentimento que transforma a indignação moral em identidade segue a mesma lógica: ambos procuram culpados, não explicações e transformações. A política do ressentimento, seja de direita ou de esquerda, é uma política sem futuro, porque vive da afirmação de dor e culpa. Reintroduzir o desejo, o prazer e o cuidado no debate político é a forma de quebrar este ciclo.
Cuidar sem punir, por uma ética do desejo
A questão central é: como cuidar das vítimas sem reforçar a repressão sexual? E como reconhecer o trauma sem o sacralizar?
Repensar a sexualidade e o trauma é repensar o corpo como campo de resistência. É necessário recuperar uma política do prazer como prática de liberdade. O prazer é político porque desafia a lógica da produtividade e da moral. E Lagasnerie insiste que a verdadeira emancipação não consiste em proteger-nos do desejo, mas em libertar o desejo das formas de poder que o domesticam.
Trata-se de reconhecer que nem todo o desconforto se traduz em violência, nem todo o sofrimento se resulta em crime e nem todo o crime encontra solução no castigo.
A nova (des)ordem sexual é o terreno onde se joga o futuro da liberdade. É preciso reconhecer e aceitar as zonas cinzentas e defender o direito à incerteza, ao risco do encontro. Uma política emancipatória não busca eliminar o perigo, mas transformá-lo. Para isso, é preciso repolitizar o prazer e desfazer a equivalência entre sexualidade e trauma, entre justiça e vingança. Não porque o trauma não exista, mas porque a sua centralidade o converte num dispositivo de controlo que impede a imaginação política. E a tarefa da esquerda é, precisamente, imaginar uma política do desejo que não tema o outro, uma ética sexual que aceite o desconforto como parte da liberdade.