A onda marrom em escala mundial

image_pdfimage_print

Michael Lowy

Nota: Este texto é um excerto adaptado de um texto publicado por Michael Lowy em A Terra é Redonda, no dia 09/02/2021.

 

Jair M. Bolsonaro não é um caso único. Assistimos nos últimos anos a um espetacular ascenso, no mundo inteiro, de governos de extrema direita, autoritários e reacionários, em muitos casos com traços neofascistas: Shinzo Abe (Japão) – substituído recentemente por seu braço direito – Modi (Índia), Trump (USA) – perdeu a presidência mas continua sendo uma força política pesada – Orban (Hungria), Erdogan (Turquia) são os exemplos mais conhecidos. A isto devemos acrescentar os vários partidos neofascistas com base de massas, candidatos ao poder, sobretudo na Europa: o Rassemblement National da família Le Pen na França, a Lega de Salvini na Itália, o AfD na Alemanha, o FPÖ na Áustria, etc.

O neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não assume a forma de uma ditadura policial, mas respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento, etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como eram as SA alemãs ou o Fascio italiano. Certo, se mobilizaram para apoiar Donald Trump vários grupos para-militares de caráter neofascista, mas nunca chegaram a tomar um caráter de massas. O mesmo vale para os grupos de milicianos que gravitam em torno de Bolsonaro e seus filhos.

Mas a diferença mais importante entre os anos 1930 e hoje se situa no terreno econômico: os governos neofascistas desenvolvem uma política econômica tipicamente neoliberal, longe do modelo nacionalista-corporatista dos fascismos clássicos.

A esquerda como um todo, com apenas algumas exceções, tem severamente subestimado esse perigo. Não viu a “onda marrom” vindo e, portanto, não viu a necessidade de tomar a iniciativa de uma mobilização antifascista. Para algumas correntes da esquerda que veem a extrema-direita como nada mais do que um efeito colateral da crise e do desemprego, são essas as causas que devem ser atacadas, e não o fenômeno fascista propriamente dito. Tal raciocínio tipicamente economicista desarmou a esquerda diante da ofensiva ideológica racista, xenofóbica e nacionalista do neofascismo.

Trata-se de um erro, partilhado por muitos na esquerda, supor que o neofascismo se fundamenta essencialmente na “classe média”. Nenhum grupo social é imune à praga marrom. As ideias neofascistas, em particular o racismo, contaminaram uma parte significativa não só da pequena burguesia e dos desempregados, mas também da classe trabalhadora. Isto é particularmente notável no caso dos Estados Unidos, onde Donald Trump conseguiu o apoio da grande maioria dos brancos no país, de todas as classes sociais. Mas vale também para o nosso Trump tropical, Jair Bolsonaro.

O principal tema de agitação da maioria destes regimes ou partidos é o racismo, a xenofobia, o ódio ao imigrante: mexicano nos Estados Unidos, negro ou árabe na Europa, etc. Essas ideias não têm relação nenhuma com a realidade da imigração: o voto para Le Pen, por exemplo, foi particularmente alto em certas áreas rurais que nunca viram um único imigrante.

A análise “clássica” de esquerda sobre o fascismo o explica essencialmente como um instrumento do grande capital para esmagar a revolução e o movimento dos trabalhadores. Com base nessa premissa, algumas pessoas da esquerda argumentam que já que hoje o movimento dos trabalhadores está muito enfraquecido e a ameaça revolucionária não existe, o grande capital não teria interesse em apoiar movimentos da extrema-direita, de modo que o risco de uma ofensiva marrom não existiria. (…)

Não há nenhuma receita mágica para combater a extrema-direita neofascista. Devemos nos inspirar – com uma distância crítica apropriada – nas tradições antifascistas do passado, mas também devemos saber como inovar, a fim de responder às novas formas desse fenômeno. O movimento antifascista só será eficaz e crível se for motivado por forças situadas fora do consenso neoliberal dominante.

O sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e reproduz fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de Estado e as ditaduras militares. A raiz desses fenômenos é sistêmica e a alternativa tem de ser radical, antissistêmica. Isto é, um socialismo libertário e ecológico que supere os limites dos movimentos socialistas do século passado – o compromisso social-democrata com o sistema e a degeneração burocrática do chamado “socialismo real” –, mas recupera as tradições revolucionárias brasileiras, de Zumbi dos Palmares e Tiradentes à Carlos Marighella e Chico Mendes.