A paz é guerra e guerra é paz: num mundo instável, como evitar a catástrofe? 

O novo mandato de Trump está, queiramos ou não afirmá-lo, a mudar o mundo. As convicções das elites políticas europeias sobre a estabilidade das relações Europa-EUA estão a ser severamente abaladas, deixando, pela primeira vez em muito tempo, um vazio e uma dificuldade em articular o atlantismo que dominou as relações geopolíticas nos últimos anos. Fala-se agora em horário nobre de imperialismo americano face à ameaça à Gronelândia, ignorando ainda as intervenções imperialistas estadunidenses no Médio Oriente, na América Latina e, essencialmente, no resto de todo o mundo.

A desorientação é sentida em todos os setores. As empresas globais estão assustadas com o modo como a guerra comercial afetará o seu bottom line. A União Europeia não sabe o seu lugar histórico no mundo. Emmanuel Macron, o líder europeu que mais se tem destacado na afirmação da necessidade de soberania europeia com especial ênfase na dimensão militar, é o mesmo líder que é hoje condenado e criticado nos países africanos francófonos. O mesmo homem que disse, numa altura em que as tropas francesas estão a ser expulsas do Sahel, que os “estados africanos se tinham esquecido de agradecer a França” é o que discute com Trump em direto na Casa Branca.

Entender esta tendência ocidental de dominado/dominador como uma irregularidade ou anomalia expressaria, de certa forma, uma incapacidade de integrar a história colonial no pensamento europeu. O autor Juan Francisco Moreno Montenegro, dramaturgo e militante equatoriano, chega mesmo a definir a colonialidade como uma face oculta da modernidade, em oposição à definição eurocêntrica que define a modernidade como a emancipação da Humanidade, dissimulando ou negando a sua faceta opressiva. 

É através deste prisma que se entende também a solidariedade europeia seletiva com o sofrimento ucraniano, capaz de ignorar, absolutamente e em simultâneo, a situação drástica no Congo e o genocídio na Palestina, ambas tragédias fruto de intervenção ocidental.

As Nações europeias e as suas lideranças estão hoje comprometidas com uma afirmação de força no mundo para contrabalançar a sua irrelevância concreta, militarizando-se e necessariamente abdicando do seu Estado Social no caminho. A perversão comunicativa é a mais evidente, roubada palavra por palavra dos neoconservadores americanos que mais têm promovido os gastos militares e a criação de conflitos no mundo que os justifiquem: paz através da força. Portanto, é preciso guerra para haver a paz e a declaração da paz é um apoio à guerra.

A guerra torna-se e é tornada inevitável, vendida como essencial para a segurança e rebuscando o patriotismo e o nacionalismo (hoje assumido pelo europeísmo também) para a justificar.

Não há dúvida que os estados precisam de segurança, tanto interna como externa. A esquerda não se pode alienar da ideia de que os estados também servem para garantir a segurança dos seus cidadãos, num mundo dividido entre estados nação. Mas não vale a pena enunciar os já elevados gastos militares da União Europeia, esses já são dados conhecidos. É preciso estarmos preparados para a certeza de que, num contexto de ascensão da extrema-direita, os mecanismos de repressão externa servirão para a repressão interna, um poderoso instrumento para a luta de classes (do outro lado). É o caso da utilização das mesmas táticas de guerra na Palestina e com os ativistas afroamericanos nos Estados Unidos ou mesmo dos bairros sociais em Portugal serem utilizados para experimentar novo material bélico. 

Hoje, mais do que nunca, é importante imaginar como se constrói um bloco dos povos para a paz. Do povo norte-americano ao russo, do palestiniano ao dinamarquês. As guerras inter imperiais que dominam o mundo são guerras de extração, acumulação de capital e de recursos naturais, de devastação ambiental e ameaça nuclear. O instrumento para essa divisão é o racismo, a xenofobia e a ideia de que a dita classe média estará segura, protegida pelas classes dominantes desde que não se desalinhe com a sua defesa. É a ganância organizada, tornada política que sacrificará sempre qualquer vestígio de protocolo internacional, a autodeterminação dos povos e o direito à vida de milhões de pessoas no mundo. 

Quando vemos comentadores na televisão eles precisam de falar horas e horas e horas e horas para nos tentar convencer de que o que vemos com os nossos olhos não é verdade. Que a guerra é má e mata, que as nossas vidas estão a ficar piores e de que não, quem ganha com isto tudo não está do nosso lado.