A primeira pessoa do plural e o diálogo entre a esquerda e o Papa

A esquerda define-se pelo sentido e pela densidade que dá à primeira pessoa do plural. Foi sempre essa consubstanciação dos laços que unem as gentes remetidas para a margem pelos mecanismos da exclusão e da exploração que fez da esquerda uma cultura.

O ‘nós’ da esquerda é o que agrega, em registo de solidariedade, a multidão dos de baixo de todos os tempos. É um ‘nós’ diferenciado, portanto. Não é o ‘nós’ do cosmopolitismo burguês, feito de uma agenda de globalização dos padrões das classes dominantes que esconde as relações de poder que a comandam. Não é o ‘nós’ do essencialismo dos “direitos naturais”, abstrações sem corpo, nem história, nem contexto. Não é o ‘nós’ dos nacionalismos alicerçados em contrastes construídos para separar unidades sociais sem fronteiras. Não é, enfim, o ‘nós’ das massas anónimas em que o irredutível de cada individualidade é esmagado. O ‘nós’ da esquerda é grande coletivo dos coletivos que lutam pelo reconhecimento e pela redistribuição. E é, tem de ser, cada pessoa que compõe esses coletivos.

Neste tempo de hegemonia neoliberal, a individualização prevalece como cânone absoluto. O ‘nós’ ou é maldito, propalado como expressão de totalitarismo, ou é um ‘nós’ fechado e excludente, guiado pelo dogma da competição sem freios com os demais ‘nós’. A tarefa de densificar e dar centralidade à noção de comunidade é um desafio ao diálogo entre forças plurais que se encontram na rejeição da hegemonia do individualismo.

Em Fratelli Tutti, encíclica de outubro de 2020, Francisco rejeita o cânone individualista neoliberal, desafiando ao mesmo tempo o ‘nós’ da esquerda. “O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a Humanidade.” E sublinha: “o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à solta as próprias ambições. Como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum.”

O ‘nós’ que Francisco contrapõe à hegemonia do individualismo é o que tem na fraternidade o seu cimento. Revisitando o ideal revolucionário “liberdade, igualdade, fraternidade”, Francisco defende que a fraternidade “tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade. Que sucede quando não há fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade (…)? Sucede que a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar.” E acrescenta: “Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que todos os seres humanos são iguais, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade.”

Deve, pois, registar-se este distanciamento do pensamento do Papa relativamente quer à hegemonia do individualismo liberal quer a um entendimento da comunidade fundado em abstrações de igualdade ou de bem comum. Em Francisco, essas referências não são marcas vazias, antes repositórios de dinâmicas concretas de transformação social que são o critério da boa política: “um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entre no campo da caridade mais ampla, a caridade política. Trata-se de avançar para uma ordem social e política cuja alma seja a caridade social.” Vezes demais, a esquerda perfilha um conceito pobre de caridade, confundindo-a com comiseração inconsequente. É tempo de abandonar essa visão estreita e de perceber que, como escreve o Papa, “é caridade acompanhar uma pessoa que sofre, mas é caridade também tudo o que se realiza – mesmo sem ter contacto direto com essa pessoa – para modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento.”

O catolicismo conservador acusou a encíclica Fratelli Tutti de “kitch religioso”, de “utopia” e de “prevalência da ética das convicções sobre a ética da responsabilidade e das consequências”. A centralidade dada ao “amor social e político” – isto é, à transposição da fraternidade da esfera interpessoal para a esfera pública, como valor-guia da construção comunitária – foi criticada como um exercício de “simplismo ético e político”. Percebe-se a estratégia de desvalorização, ela mostra o temor conservador face à perceção do potencial deste pensamento para engrandecer o movimento plural de contestação à hegemonia do individualismo neoliberal. Mas a estratégia de desvalorização do ‘nós’ anunciado por Francisco na Fratelli Tutti não é exclusiva do catolicismo conservador. Há também quem, à esquerda, vá por esse caminho. E também por temor: o de que a chamada à fraternidade com rosto concreto perturbe a quietude tão infértil do discurso ideológico. A esquerda faria bem em dialogar com o pensamento de Francisco. Enriquecer-se-iam mutuamente na imaginação de um ‘nós’ que mudasse as vidas de todos.