A re-reconfiguração da esquerda espanhola

Com o nascimento do Podemos em 2014 e o fim do bipartidarismo em Espanha, a esquerda neste país nunca mais parou de evoluir e de se reconfigurar. Esta história tem todos os ingredientes de um típico guião de telenovela: protagonistas fortes que se confundem com as organizações que lideram; relações confusas, com coligações de geometria variável, cisões, “confluências” de âmbito regional e muitos comboios de siglas; e um ritmo frenético e difícil de acompanhar. Neste momento vive-se um novo capítulo deste enredo: o aparecimento do Sumar.

Até há poucas semanas poucas certezas havia sobre o Sumar. Sabia-se que era uma marca lançada há cerca de um ano pela galega, atual Vice-presidente do Governo e Ministra do Trabalho Yolanda Diaz, suspeitando-se que serviria como plataforma para concorrer às eleições legislativas do final deste ano. Só há poucos dias se confirmou essa suspeita (que se foi tornando certeza ao longo dos meses) num grande comício em que Yolanda assumiu que quer ser “a primeira presidente de Espanha”. Este comício contou com a presença dos mais importantes representantes de uma série de forças à esquerda, como a Izquierda Unida, os Comuns de Ada Colau, o Más País de Íñigo Errejón e o Compromís da Comunidade Valenciana. Todas estas forças têm ou tiveram no passado alguma relação com o Podemos: o Más País resultou de uma cisão, a Izquierda Unida e os Comuns são parceiros de governo e de grupo parlamentar e fazem parte da coligação Unidas Podemos e o Compromís é parceiro de governo na respetiva comunidade autónoma e também já integrou uma coligação eleitoral no passado.

A grande ausência deste momento inaugural foi, precisamente, a da liderança do Podemos. Foi a confirmação de um conflito que tem subido de tom nas últimas semanas. De um lado, acusa-se Yolanda Diaz de ingratidão e deslealdade para com o partido que permitiu que se tornasse ministra e de recusar primárias abertas. Do outro, culpam-se as líderes do Podemos por estarem a fazer uma luta por lugares e por colocar os interesses do partido à frente da possibilidade de unidade à esquerda (e, portanto, dos interesses do país). Esta tensão é alimentada pela proximidade das eleições municipais e autonómicas do próximo dia 28 de maio, que redefinirão o balanço de forças no seio do bloco da esquerda. Apesar das acusações cruzadas de sectarismo, a verdade é que o Podemos participa coligado em 10 das 12 eleições para os parlamentos autonómicos e em quase todas as grandes cidades com forças que integram o Sumar. Há até casos, como na Comunidade de Madrid, em que estão coligados com um membro da plataforma (Izquierda Unida) contra outro membro (Más Madrid, estrutura local do Más País).

O esticar de corda é público e transparente. Líderes de todos os partidos compõem uma cacofonia diária de entrevistas e artigos, mas o conteúdo das suas intervenções difere pouco: a retórica da necessidade da unidade à esquerda nas próximas eleições é hegemónica. A unidade é assumida por todos como imprescindível, a única hipótese que pode permitir sequer sonhar com a continuidade do atual governo e de afastar o fantasma de um futuro governo de extrema-direita PP-Vox. Ser visto como o fator impeditivo de uma união à esquerda é, portanto, um ónus pesadíssimo que ninguém quer para si.

Mas então, que diferenças existem entre Podemos e Sumar e quais são os verdadeiros motivos para este impasse que ninguém parece querer? Programaticamente, há muito pouco que os distinga. O Sumar apresentou até agora um programa genérico e de mínimos, essencialmente social-democrata e sobre o qual à esquerda só se poderá discordar por ser pouco ambicioso. Representa a continuidade das políticas do governo PSOE-Unidas Podemos e por isso é, até ver, em tudo compatível com o programa do Podemos. A maior diferença que se poderá encontrar é no estilo de comunicação: Yolanda aposta por um estilo consensual, capitalizando a imagem que foi criando como ministra, de pessoa séria e afável, que a levou a ser distinguida como a personalidade política com melhores índices de aprovação no país. Por outro lado, o Podemos é mais crítico da NATO e da política de envio de armas para a Ucrânia, e aposta por uma comunicação de enfrentamento agressivo face aos grandes meios de comunicação e donos de grupos empresariais espanhóis – é o “estilo Pablo Iglesias”, que apesar de ter anunciado o abandono da participação política ativa e de já não ter nenhum cargo no partido, continua diariamente a fazer o que melhor sabe – comunicar – e as suas posições continuam a confundir-se com as do partido, como se de um porta-voz fantasma se tratasse.  Há que recordar que Yolanda Diaz era até há pouco tempo vista como a cara da Unidas Podemos e futura cabeça-de-lista por esta coligação. Tentar encontrar linhas na areia que possam justificar esta separação é, por isso, uma tarefa infrutífera. As diferenças que existem são cosméticas, artificiais. Quando a política perde a centralidade das ideias, torna-se um jogo de cadeiras e de egos. Seja qual for o resultado deste impasse, a esquerda sairá mais pobre.