A Uberização é o passado do trabalho

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Artigo de Nuria Soto e Felipe Alvarez.


Flexibilidade. Liberdade. Sê o teu próprio patrão. Estas foram as palavras que ressoaram continuamente na nossa “formação” para entrar na plataforma Deliveroo, e na de milhares de estafetas até hoje. Que maravilha! Parecia o trabalho ideal, no qual poderíamos trabalhar quando quiséssemos, descansando o quanto quiséssemos e matando o tempo livre entregando pedidos e fazendo algum dinheiro. Não poderia estar mais longe da realidade. Não demorou muito para ver que estávamos diante de uma forma de controlo subtil mas óbvia: o algoritmo.

As empresas que seguem essa lógica têm alguns pontos em comum: não há horário fixo, mas a cada semana as trabalhadoras e os trabalhadores comunicam as horas que desejam trabalhar na semana seguinte e é a empresa que decide quantas horas realmente se farão. As horas atribuídas não garantem receita económica, uma vez que a empresa paga pelo pedido feito e não pelo tempo gasto. Essa decisão é tomada com base numa série de critérios obscuros geridos por um algoritmo, que se traduz numa pontuação ou excelência com base em alguns fatores – como disponibilidade quando há alta procura, velocidade, pontuação do cliente final (má pontuação = menos trabalho = menos dinheiro), e muitos outros aspectos opacos e inacessíveis que modulam e internalizam a disciplina nos trabalhadores. Podemos suspeitar de outros fatores, como a visibilidade de alguns trabalhadores nas manifestações, filiação sindical, entre outros, conforme decidiram alguns tribunais no Estado Espanhol.

Assim, a suposta liberdade oferecida pela economia de plataformas acaba por se revelar muito próxima da escravidão. Dizem “tens liberdade para trabalhar quando quiseres” mas se o trabalhador não escolhe os horários de alta procura, se não é bem avaliado pelos clientes, se não é dócil relativamente às imposições da empresa e outras razões opacas, é penalizado, as horas não lhe serão atribuídas e não poderá pagar a renda. Acaba por ser um trabalhador desprotegido, à espera que lhe caiam pedidos à porta de um estabelecimento. Quem não se lembra das condições de trabalho das primeiras fábricas do séc. XIX? Ou dos trabalhadores temporários indocumentados no Norte global?

Todas essas condições afetam o que resta do estado de bem-estar, que foi uma conquista da luta da classe trabalhadora, alimentada pela consciência de classe e pela ação coletiva. Essa conquista, como bem sabemos, deu origem a direitos que hoje tomamos como garantidos, como o salário mínimo, jornada máxima de 8 horas diárias, férias remuneradas, contribuições, reforma, saúde, educação e serviços públicos, etc. Questões que dão um pouco de dignidade à pesada tarefa de vender força de trabalho a terceiros.

O neoliberalismo tentou minar esses direitos que impõem certas responsabilidades às empresas e atentam contra a sua sede de acumulação de dinheiro. Para tal tem utilizado múltiplas estratégias e uma delas – a mais eficaz a nível psicossocial – é a promoção da suposta flexibilidade e mentalidade individualista, atrelada à ideia de empreendedor/a. Algo que não é novo, mas que vem fermentando desde os anos 60 no seguimento de várias crises.

Que melhor forma de evitar responsabilidades e privar o trabalhador de seus direitos do que fazê-lo sentir-se com sorte? O trabalhador não está a ser explorado, ele é o seu próprio patrão, um grande empresário com uma mochila amarela; não faz entregas, mas sim “missões”; não é demitido, mas “desconectado”. É por meio dessa perversão da linguagem que, aos poucos, se confundem as diferentes realidades que o trabalhador constantemente enfrenta. Além disso, é importante reforçar essa ideia individualista de empreendedorismo, que choca totalmente com qualquer ideia coletiva que vá além dos próprios interesses, ou seja, com o sindicalismo, principal inimigo da acumulação de capital por parte dos patrões à custa da integridade dos trabalhadores.

Assim que desenvolvem a sua nova linguagem, descrevem a realidade da exploração e da falta de proteção como empreendedorismo e desenvolvimento pessoal, desligando a relação com a empresa. Quando vozes sensatas falam de fraude tributária, as empresas dizem que há “incerteza jurídica” usando os argumentos por si mesmas criados. Com a desculpa da novidade do algoritmo, dizem que as leis atuais não se ajustam às novas tecnologias e modelos de trabalho mas, quando vemos além da sua teia de mentiras, percebemos que a única coisa que não se adapta à lei vigente é a desproteção laboral e a fraude fiscal.

Infelizmente, vários governos no mundo caíram nesta armadilha discursiva e mudaram a lei para adaptá-la às novas fraudes, e é exatamente isso que queremos denunciar. No Estado Espanhol, lutamos intensamente há 4 anos para evitar esse modelo. Não precisamos que, em nome de uma suposta flexibilidade, se crie um ponto intermédio entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, com menos direitos que um trabalhador.

Essas chamadas “novas formas de trabalho” são, na realidade, o passado do trabalho; trabalhar sem salário mínimo e sem jornada máxima, sem férias remuneradas, sem direito a licença médica… enfim, quase sem qualquer tipo de proteção. Facto confirmado, no caso espanhol, por 48 decisões judiciais, uma delas do Supremo Tribunal de Justiça.

É importante desmontar categoricamente essa novidade referente à insegurança jurídica e à inovação, porque em alguns casos começa-se a falar da necessidade de figuras intermédias que se adaptem a essas “novas formas de trabalho”. Mais uma expressão de que o que se procura é aliviar as responsabilidades das empresas, distribuindo-as pelos trabalhadores e pela própria sociedade. Uma armadilha que leva ao grande erro de tentar complementar a flexibilidade (inexistente) com direitos. Resumindo: manter uma falsa autonomia do estafeta, dando-lhe simultaneamente alguns dos direitos de um trabalhador assalariado. Um erro da sociedade e uma conquista do empregador, porque a forma mais eficaz de atribuir direitos e qualidade de vida ao trabalhador é através de algo tão simples como reconhecer a sua verdadeira relação de trabalho.

Neste contexto parece que o que define o trabalhador é uma opinião e não um facto definido por uma série de características legislativas. Não defendemos uma figura ou outra de acordo com as nossas preferências particulares. Não é que prefiramos ser assalariados em vez de independentes. O que defendemos é que somos assalariados não reconhecidos. Portanto, a nossa luta não é a favor do trabalhador assalariado ou contra o independente: é contra o falso trabalhador independente. De facto, a célebre “lei Rider” no Estado Espanhol não impede quem pretende ser independente. Mas, para tal, deve ter a sua principal ferramenta de trabalho (ou seja, a sua própria app, que nestas plataformas é das empresas), negociar taxas, ter carteira de clientes própria, organizar o seu tempo, não ser penalizado, etc. Mas isto leva-nos a questionar se é mesmo viável.

Portanto, não é verdade que, em vez de um debate entre trabalhadores e empresa, haja falsos debates entre estafetas que defendem trabalho independente e estafetas que defendem trabalho assalariado. Não se trata de um problema setorial, mas de um modelo económico em que todos devemos ter voz.

Embora seja verdade que os modelos de trabalho precisam de ser melhorados, claramente não é necessário retroceder para a perda de direitos. Por muito que estas empresas continuem a chamar evolução ao retrocesso, e a definir o que é decrépito como algo “cool”, a classe trabalhadora continua a lutar pelos factos, e contra a sua distorção através da nova linguagem. Nem flexibilidade, nem liberdade, nem próprio patrão: precariedade, falta de proteção e relação de trabalho não reconhecida.