A violação dos direitos sexuais e reprodutivos é um ato de genocídio?

“Sou uma mulher árabe de cor e há de nós em todos os tons da raiva

e ouviste ontem os gritos da minha irmã 

enquanto dava à luz num checkpoint 

com soldados israelitas a olhar entre pernas dela

 para a próxima ameaça demográfica?”

Salvage – Rafeef Ziadah

Uma sala de estar cheia de preservativos que se transformaram em nada mais que balões prestes a rebentar é o fecho do filme palestiniano “Condom Lead” dos realizadores gémeos de Gaza Arab & Tarzan Nasser (2013).  O título é “inspirado” – talvez não seja a expressão certa – pelo nome da brutal ofensiva israelita contra a Faixa de Gaza em 2009 “Cast Lead” (Chumbo fundido). O filme coloca a pergunta: haverá um espaço para fazer amor no meio de guerra?

Nesta curta metragem de 14 minutos, todas as tentativas falham. O amor à vida, o maior ato de resistência do povo palestiniano, é continuamente interrompido pelo som de aviões, dos misseis e das bombas. Os preservativos, afinal, não protegem, mesmo, de nada.

Neste momento, durante o atual ataque contra Gaza, este cenário já não é possível. Não só porque – segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) – mais que 85% da população de Gaza foi forçada a deixar as suas casas, e com elas a sua intimidade, mas também porque a ocupação israelita tinha já banido a entrada de preservativos na Faixa de Gaza há alguns anos, alegando que estes eram utilizados em “atos de violência” ao serem lançados juntamente com papagaios e balões com materiais inflamáveis que causavam incêndios na fronteira da Faixa de Gaza.

A proibição de preservativos, que certamente prejudicou a saúde sexual e reprodutiva em Gaza fazendo aumentar as infeções sexualmente transmissíveis, é incomparável ao assalto deliberado aos direitos humanos, incluindo os relativos à saúde sexual e reprodutiva, especialmente das mulheres e das raparigas, depois de 7 de outubro.

“Desejei que a terra me engolisse” é como Safa’a descreve o momento em que chegou a menstruação depois de ter sido forçada a deixar a sua casa que foi bombardeada, obrigando-a a viver numa tenda juntamente com outras famílias. Sem acesso aos produtos básicos de higiene menstrual não encontrou nenhuma solução sem ser utilizar um bocado do pano da sua tenda como penso higiénico. A menstruação tornou-se um pesadelo para muitas mulheres em Gaza, as quais não só são desapossadas da sua privacidade e do acesso aos produtos de higiene menstrual e água, mas também sofrem de acesso limitado a casas de banho, já que nos abrigos das Nações Unidas cada casa de banho é partilhada por 486 pessoas. 

Apesar dos efeitos secundários perigosos, muitas mulheres não encontraram outra alternativa senão utilizar comprimidos para atrasar a menstruação. E ao mesmo tempo que os direitos das mulheres palestinianas a estes produtos são negados em Gaza, através do controlo de entrada da ajuda humanitária por Israel, as prisioneiras políticas palestinianas detidas pela ocupação israelita viram também os seus pensos higiénicos e tampões confiscados como política de punição coletiva após 7 de outubro.

No projeto fotográfico Beyond Checkpoint, a artista palestiniana Samar Hazboun documenta a memória de mulheres que viram os seus direitos a um parto digno a serem postos em causa pelos soldados israelitas que controlam os checkpoints. Como resultado da segunda intifada, mais de 67 palestinianas deram à luz em checkpoints entre 2000 e 2005. Enquanto naquela altura se investiu na formação de equipas de saúde e parteiras tradicionais, neste momento, com a falta de eletricidade e água potável em Gaza, reduzir os riscos de vida para as mulheres grávidas e os seus bebés é uma tarefa quase impossível. Dar à luz durante o genocídio que está em curso é algo que se assemelha a um “filme de terror”, como as próprias palestinianas descrevem. Segundo os dados de UNRWA, estima-se que 50.000 mulheres grávidas estejam a enfrentar dificuldades de acesso aos cuidados pré-natais e de maternidade, sendo que uma média de 160-180 mulheres dão à luz por dia em Gaza, 15% das quais são suscetíveis de sofrer complicações durante a gravidez ou o parto, sem acesso a serviços obstétricos ou pediátricos, algumas mulheres foram submetidas a cesarianas sem anestesia ou analgésicos.

Os bombardeamentos cirúrgicos israelitas aos hospitais – incluindo aqueles que prestam serviços de saúde sexual reprodutiva e materna, a escassez de combustível que deixou muitos recém-nascidos sem incubadoras, a negação de produtos de higiene menstrual e de contracetivos, e as condições que as mulheres em Gaza passam durante a gravidez e o parto tornaram-se num padrão constante desde 7 de outubro, constituindo estes uma violação clara do direito internacional humanitário. A ocupação israelita sempre colocou a fertilidade e o os úteros das mulheres palestinianas no centro da batalha. Os seus corpos são vistos como perigosos, já que carregam o que o colonizador vê como ameaça demográfica. Negar os direitos sexuais e reprodutivos é uma política israelita deliberada e um dos caminhos para a limpeza étnica da Palestina. 

Um relatório das Nações Unidas sobre a violência contra as mulheres e as raparigas, advertiu que a violência reprodutiva infligida por Israel contra as mulheres e os recém-nascidos, pode ser considerada um ato de genocídio nos termos do artigo 6 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que engloba ações como “impor medidas destinadas a impedir os nascimentos dentro de um grupo”. A justiça sexual e reprodutiva numa altura de genocídio é um assunto sobretudo político. Garantir os direitos sexuais e reprodutivos também significa travar o genocídio e a limpeza étnica do povo palestiniano.