Manejado por metáforas poderosas e representações mitológicas, o conceito de povo é uma abstração e uma interrogação. É um sujeito político sem o ser: quando Lincoln, no final da batalha de Gettysburg (1863) proclamou o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, estava precisamente a usar o encantamento da fórmula, como também a gerir a sua ambiguidade – se é o governo o sujeito da decisão, o povo não o é; se age em seu nome por um efeito de representação, então a legitimidade baseia-se na intenção (“pelo povo) e na tutela (“para o povo”) e, portanto, não na decisão do próprio povo. Foi isso que levou alguns dos críticos da restrição da democracia à única forma de representação, como foi o caso de Jean Paul Sartre nas vésperas de Maio de 1968, a denunciar uma construção do “povo” como uma serialização, como a anonimização das pessoas e a ocultação das contradições sociais, o que as eleições acentuariam ao excluir outras formas de presença do povo; o que então exigia era que a democracia se baseasse na apresentação e não só na representação. Assim sendo, o povo são muitos e poucos falam.
Ora, o conceito de povo é tipicamente banalizado como a população de um Estado. Não é uma etnia, pois várias farão parte do povo (para excluir essa realidade, a extrema-direita usa o termo “os bons portugueses” ou os “bons italianos”); não é sequer uma nação, pois esta tem uma história cultural e várias camadas de identificação que funcionam por exclusão. Povo é o objeto de um Estado, não é portanto um sujeito político. No entanto, sendo um objeto que é fantasiado como um sujeito, é o centro da vida pública e do discurso político: é no povo que reside a soberania e portanto a legitimidade primeira, assim vai a narrativa. Não é, como é bom de ver, e um banqueiro central alemão dizia, com o à vontade que a profissão e o estatuto lhe permitia, que preferia o “plebiscito permanente dos mercados globais ao plebiscito das urnas”.
Há portanto no conceito de povo uma ambiguidade essencial: ele é sempre uma “comunidade imaginária”, é identificado com a sua representação, que, essa sim, é corporizada em instituições, pessoas
e procedimentos espectacularizáveis. Mas se esse todo do povo é imaginário, como se define então o
sujeito político? Ou, noutros termos, o povo é a parte oprimida da nação ou a totalidade da nação? É a
parte de baixo ou o mundo inteiro? Robespierre chamava-lhe “o pequeno povo sempre infeliz”, como os
iluministas, e seria então somente uma parte da nação. Mas, se for a parte, como governará o todo?
Na resposta a esta ansiedade, há duas tradições no pensamento político que percorrem caminhos paralelos ao longo do tempo. Uma é a tradição aristocrática e oligárquica, a que considera que o acesso do povo à decisão é um vício perigoso, o que portanto define o povo como a parte excluída do poder e
prefere essa fronteira à ameaça da democracia. Foi o caso de Aristóteles, para quem a soberania do povo
significaria o risco despótico, sendo o predomínio da aristocracia a resposta ao germe da prepotência.
Heródoto já o dissera duzentos anos antes: se o povo não sabe conduzir os assuntos da comunidade, o
tirano saberá fazê-lo. Esta visão aristocrática tem uma consequência, a restrição da representação ao espaço da elite. Um exemplo esclarecedor é o de John Adams, fundador dos EUA e seu segundo presidente (1797-1801), que concluía que o povo no seu todo não podia ser um sujeito político soberano,
dado que a extensão do direito de voto era portadora do perigo da maior insídia: “É perigoso abrir uma
tão fértil fonte de controvérsia e altercação com a universalização do direito de voto (…). Não teria fim.
Surgirão novas reivindicações. As mulheres exigirão o voto. Rapazes dos 12 aos 21 anos acharão que os
seus direitos não são suficientemente tidos em conta e qualquer homem, sem ter um tostão, exigirá ter
uma voz igual, como qualquer outro em todos os atos do Estado. Tende a confundir e destrói todas as
distinções e prostra todas as categorias a um mesmo nível”.
Contra esta linhagem do argumento elitista na definição da democracia política, o pensamento que associa a democracia a um direito constitutivo das sociedades modernas é mais heterogéneo. Inclui, por exemplo, a doutrina do populismo de esquerda, a partir de Laclau e de Mouffe, que se propõe superar o marxismo e substitui-lo por uma narrativa de subjetividades articulada em torno da vontade de “construir o povo”, ou de lhe criar um voz, ou uma interpretação. Construir o povo responde à ideia de que a identidade se define com a formação de um campo, através de uma linguagem. Assim sendo, segundo todas estas teorias, as do governo das elites ou as deste populismo de esquerda, o povo não se define: faz-se (ou impede-se que se faça) e esse é o processo de criação (ou de bloqueio) do sujeito político. Ou, dito por outras palavras, o sujeito anuncia-se como parte de uma narrativa, ocupa um espaço que lhe está reservado. Estas estratégias bipolares são por isso formas de comunicação e de reconhecimento, ou seja uma criação de subjetividade baseada na denominação (ou a sua censura). Portanto, a pergunta não é: a política para quem?, mas sim esta outra: quem usa esta política que é um discurso não a usará para um poder particular e não para o povo?
A esquerda só pode seguir outro caminho alternativo: alavancar as contradições que existem na massa imaginária, perfurar o nevoeiro da mistificação e mobilizar para isso o povo dos explorados, o que
exige uma representação (o direito de voto) e uma apresentação (os movimentos e organizações da luta de classes). Nem uma sem a outra. O povo só existe como lutas e é aí que encontramos e criamos a força da democracia.