Agricultura, floresta e paisagem capitalista

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Artigo de Ricardo Vicente.


Nas últimas décadas foram grandes as mudanças na agricultura portuguesa, com moldes e ritmos diferentes, em função das especificidades de cada região. De norte a sul do país encontramos uma grande heterogeneidade edafoclimática e socioeconómica que se traduz em diferentes aptidões produtivas. Também a estrutura fundiária é muito distinta, destacando-se uma agricultura de base familiar que domina as regiões centro e norte, em número e em expressão territorial, que contrasta com duas tipologias muito distintas que assumem especial importância a sul do Tejo: a grande agricultura de base fundiária, de elevada dimensão física e com base em sistemas de produção extensivos; a agricultura do grande agronegócio, com elevado poder financeiro, tecnológico e comercial.

Nas últimas duas décadas, o país perdeu 30% das explorações agrícolas e a Superfície Agrícola Útil (SAU) reduziu 2,6%, mas se considerarmos apenas a Beira Litoral, por exemplo, perderam-se 45% das explorações agrícolas e 24% da SAU. No mesmo período, ocorreu uma enorme quebra produtiva no conjunto da agricultura portuguesa, com o Valor Acrescentado Bruto a preços de mercado a cair mais de 20% comparativamente à década de noventa. As regiões centro e norte são as mais afetadas pelo abandono da atividade agrícola, têm menos cobertura dos subsídios da Política Agrícola Comum e sofreram maior ocupação florestal com base em monoculturas de eucalipto e pinheiro bravo que uniformizaram a paisagem. A combinação destes fatores levou à perda de resiliência do território, sendo os incêndios rurais a face mais visível desta fragilidade.

No centro e norte do país, a uniformização da paisagem foi facilitada pela ausência de política pública capaz de promover a continuidade das agriculturas locais – que compartimentavam a floresta – e valorizar a sua produção e serviços ecológicos, mas foi também impulsionada pelo ajustamento dos instrumentos de política pública de ordenamento e financiamento aos interesses da indústria da celulose, como são exemplo os Planos Regionais de Ordenamento Florestal que, apesar de revistos em 2019, continuam a considerar como prioritários os povoamentos puros de eucalipto. Sem monitorização e fiscalização eficientes, instalou-se a política de terra queimada e a plantação de eucaliptos foi fortemente incentivada por apoios públicos ao investimento, ignorando as suas consequências ambientais e socioeconómicas. Na sombra da despesa pública enraizaram-se os mecanismos de favorecimento já elencados, aos acresce a ausência de intervenção estatal na regulação do mercado de produtos agroflorestais e a quase total dedicação dos meios públicos de investigação e inovação sectorial à fileira da celulose.

A sul do Tejo surgiram novos processos de uniformização de paisagem, mas com traços comuns: extrativista e lesivo para o interesse público; quebra de resiliência do território; ausência de monitorização e fiscalização; grande nível de financiamento público. O processo decorre essencialmente em áreas beneficiadas por investimentos públicos de suporte ao regadio, como é o caso do Alqueva e do Perímetro de Rega do Mira, onde os promotores conseguem financiar-se com água muito abaixo do custo de mercado. Destaca-se o olival e o amendoal intensivos no Alqueva e as culturas hortícolas cobertas por plástico no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Comparativamente com a produção florestal, estes casos têm necessidades de trabalho anual muito maiores. Os trabalhadores, tendencialmente imigrantes, são explorados até onde a chantagem conseguir o despejo da sua dignidade.

O sistema capitalista imprime na paisagem portuguesa a sua lógica mineira sobre os recursos naturais, uniformizando-a como reflexo da sua hegemonia no poder económico e governativo. A luta pelo uso democrático dos recursos naturais, por uma paisagem heterogénea e um território resiliente às alterações climáticas é certamente um confronto com o capitalismo que nos deve mobilizar.