Agronegócio e escravatura moderna

Estima-se serem cerca de 90% da mão de obra na agricultura. Continuam a chegar dos países mais pobres da União Europeia e do leste europeu, ainda que em menor número, e de países africanos, como o Senegal, o Mali, o Egito, a Argélia ou Cabo Verde. Nos últimos anos, os trabalhadores imigrantes de países indo-asiáticos, como a Tailândia, Nepal, Paquistão, Índia ou Bangladeche, ganharam cada vez mais peso no setor agrícola. E, ainda mais recentemente, os imigrantes timorenses vieram engrossar as fileiras da mão de obra barata, tão estimada pelo agronegócio.

Muitos acumulam dívidas no país de origem, onde recorreram a créditos para custear a viagem para Portugal, rumo a “uma vida melhor”. Em alguns casos, as suas casas, e até mesmo as suas famílias, servem de garantia para o pagamento dos montantes em dívida. Outros ousaram atravessar o Mediterrâneo num pequeno barco, pagando umas centenas de euros, e viram alguns dos seus amigos ou familiares ficarem pelo caminho.

Quando chegam ao país, se têm “sorte”, e esses são uma escassa minoria, são contratados diretamente pelo beneficiário final, a exploração agrícola. Aí não faltam exemplos de entidades empregadoras que os sujeitam a permanente intimidação e ritmos de trabalho insuportáveis. E as condições não são iguais para todos, com algumas nacionalidades a serem favorecidas mediante a atribuição de tarefas mais leves e remunerações mais favoráveis, e a servirem de capatazes dos seus colegas, por forma a semear a discórdia.

A regra, no entanto, é caírem nas mãos de angariadores sem escrúpulos, de nacionalidades várias, que se apresentam devidamente legitimados sob a designação de uma qualquer empresa de trabalho temporário ou de prestação de serviços agrícolas. Estes angariadores, para quem os trabalhadores imigrantes representam um reservatório de mão de obra a explorar, oferecem todo o tipo de facilidades, como documentos na hora, casa onde morar, transporte para o trabalho, que, mesmo quando cumprem, depois vêm a cobrar caro.

Os contratos firmados com os imigrantes, quando existem, incluem cláusulas ilegais. O angariador impõe unilateralmente o horário e as condições de trabalho. O trabalhador recebe as horas contabilizadas e quem as estipula e contabiliza é o angariador. Os contratos chegam a prever descontos diretos na remuneração, sem quaisquer limites, relacionados com acomodação, transporte e despesas de água, luz e gás, entre outros. Quando falo em acomodação refiro-se a contentores ou casas sobrelotadas sem quaisquer condições de salubridade. No final do mês, os trabalhadores imigrantes não recebem sequer o salário mínimo. Muitas vezes, o pouco que lhes chega às mãos não dá nem para comer.

Mas a existência de contrato é a exceção, não a regra. Proliferam as situações em que os salários não são pagos, em que existe intimidação permanente ou de violência, e em que os trabalhadores são atirados para a rua sem qualquer pudor.

É inquestionável que o país precisa destes trabalhadores. O peso das suas contribuições para a Segurança Social, oseu contributo para mitigar o declínio populacional de Portugal, bem como para responder às necessidades da economia são imprescindíveis. Sem eles, muitas atividades económicas fechariam portas, essencialmente em setores como o agrícola. Isto para não falar no enriquecimento que pessoas oriundas de outros países representam em termos gastronómicos, culturais, de experiências e conhecimentos.

Ainda assim, Portugal continua a falhar, em toda a linha, no que respeita a garantir os seus direitos, laborais e humanos: o Estado não cumpre a lei. Continuamos a assistir a uma flagrante violação da lei da imigração, mediante o incumprimento dos prazos máximos de resposta estipulados nos processos de regularização dos imigrantes e a imposição de burocracias infindáveis. Esta situação condena os trabalhadores imigrantes a todo o tipo de abusos laborais, e condiciona o seu acesso a bens e serviços essenciais. Os imigrantes não podem continuar a ser penalizados pelo incumprimento do Estado.

As políticas de acolhimento e integração de migrantes também têm de sair do papel e deixar de ser meros verbos de encher. A deficiente, ou quase inexistente, aplicação do programa de Português Língua de Acolhimento, que impede os imigrantes de ultrapassarem a barreira linguística, a falta de informação sobre os seus direitos, a fragilidade do atendimento em serviços públicos, que se exige serem de qualidade e acesso universal, também só servem a quem quer fragilizar ainda mais os imigrantes, isolá-los, e transformar Portugal numa terra sem lei.

E não podemos permitir que o modelo de rápida acumulação de lucro do agronegócio, da agricultura hiper-intensiva, predatória do meio ambiente, que despoja consumidores domésticos e pequenos agricultores da água disponível, se alimente de uma horda de trabalhadores sem quaisquer direitos, submetidos a uma verdadeira escravatura moderna.

O regime de total de impunidade tem de acabar. Por um lado, não podemos ter empresas de trabalho temporário ou empresas de prestação de serviços agrícolas criadas na hora e à medida, e que também podem ser extintas na hora sem deixar rasto. São empresas com sedes falsas, cujos donos são impossíveis de identificar ou localizar, e às quais não é exigida qualquer garantia que possa salvaguardar, por exemplo, o pagamento de salários que fiquem por saldar.

Por outro lado, as grandes explorações agrícolas, que dependem da sobre-exploração de trabalhadores imigrantes para engordar os seus cofres, não podem continuar a sacudir a água do capote quando se trata de abusos.

As alterações legislativas introduzidas em 2016 por proposta do Bloco vieram responsabilizar toda a cadeia de contratação pelas violações dos direitos dos trabalhadores. Todavia, como a realidade tem vindo a demonstrar, quem verdadeiramente usufrui do trabalho dos imigrantes continua impune, na medida em que só é responsabilizado pelas atrocidades cometidas quando há condenação prévia do angariador. O tal que pode desaparecer sem deixar rasto. Nesse sentido, o Bloco pretende dar mais um passo em frente, propondo que exista responsabilização direta de toda a cadeia, incluindo o dono da exploração agrícola, os seus dirigentes e administradores. Mas os interesses do agronegócio parecem falar mais alto, e tanto PS como PSD têm-se oposto a esta medida.

Se é certo que os imigrantes são as vítimas diretas de todos estes esquemas, sendo-lhes negados todos os direitos e toda a dignidade, também é certo que a fatura é paga por todas e todos nós. Pagamo-la quando permitimos que as empresas angariadoras não paguem IVA, ou não façam os devidos descontos para a Segurança Social e IRS dos seus trabalhadores, quando o modelo de rápida acumulação de lucro do agronegócio impõe uma política de baixos salários a todos os trabalhadores, quando condicionamos o nosso futuro ao permitir a delapidação dos nossos recursos naturais.

E é por isso que, em nome do interesse de todos, temos de acabar com o privilégio e a impunidade de alguns.