Alegria Triste
A sociedade ocidental capitalista e patriarcal subjuga o indivíduo privando-o de uma série de liberdades, que condicionam manifestamente o exercício dos seus “tempos- livres”, seja por privar o indivíduo desse tempo, seja por privar o individuo das condições económicas necessárias para participar em atividades lúdicas e/ou culturais. É, por isso, comum a busca de um alívio das tensões quotidianas criadas por este sistema, em momentos de festa populares. Segundo Bakhtin a festa é algo que tem vindo a acompanhar a história da humanidade. Ainda que com variações no tempo e espaço, ela configura um momento em que os indivíduos se libertam do utilitarismo e finalidades práticas, permitindo-lhes aceder a uma utopia temporária.
Existe, contudo, uma longa tradição de pensamento, que categoriza a alegria como um paliativo para o povo, alienando-os da sua condição de explorado, tecendo, por isso, duras críticas a celebrações da cultura popular. Exemplo disso é o Carnaval – referimo-nos aqui sobretudo ao Carnaval brasileiro – visto por muitos como um simples espaço de alívio das tais tensões quotidianas imprimidas pelo capitalismo durante um período restrito, funcionando assim como um momento catártico que permite manter a ordem social durante o resto do ano. Ainda que o Carnaval seja um meio para a tal utopia temporária de que nos fala Bakhim, considerar que o Carnaval, e a sua alegria, são coisas de alguns dias no ano, é deveras redutor. Tal como será redutor acreditar que o Carnaval é desprovido de consciência social, ou que a alegria por ele suscitada é passiva e alienante.
Paralelamente, temos linhas teóricas que decorrem no sentido inverso ao defender que não existe na alegria uma verdadeira alienação ou negação da infelicidade, defendendo até que a alegria surge como uma resposta à infelicidade. Rosset (2000, p.25) afirma que “Essa indiferença à infelicidade não significa que a alegria seja desatenta a ela, menos ainda que pretenda ignorá-la, mas, ao contrário, que é eminentemente atenta, a primeira interessada e a primeira concernida; isso devido, precisamente, a seu poder aprovador que lhe permite conhecer a infelicidade mais e melhor do que ninguém”. Para Rosset (2000, p.25) a alegria só existe quando é ao mesmo tempo contrariada e se encontra em contradição com ela mesma – “a alegria é paradoxal ou não é alegria”, ou como canta Vinicius de Moraes, “Mas pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza”.
O samba, elemento indissociável do Carnaval brasileiro, é em si mesmo um perfeito exemplo dessa expressão de alegria paradoxal – ainda nas palavras de Vinicius de Moraes “Porque o samba é a tristeza que balança”- que, ao longo de mais de um século de história, agregou músicos e corpos dançantes numa roda, numa escola ou nas ruas, que exaltavam alegremente a sua tristeza. O samba conta histórias de escravos, de colonização, de corpos negros vergastados, de vida periférica, de sofrimento e expropriação dos povos indígenas, da exploração do trabalhador, da realidade da grande maioria do Brasil. Na sua ginga feliz materializa a dor do oprimido, confortando-o, num misto de reconhecimento e validação da sua vivência, bem como de mensagens de esperança – invocando ainda o mesmo samba de Vinicius de Moraes “a tristeza tem sempre uma esperança / de um dia não ser mais triste não” – ao mesmo tempo que denuncia e questiona o opressor, desconfortando-o.
Alegria Popular
Com o intuito de contribuir para a desmistificação da narrativa hegemónica de que o escravo aceitava passivamente a sua condição, Gaião (2008), no seu estudo “HISTÓRIA, FESTAS E MÚSICA: RESISTÊNCIA A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL (1750-1800)”, relata como os escravos se apropriavam das festas promovidas pelo Estado colonial, como uma das suas formas de resistência. Estas festas eram promovidas com intuito de controlar possíveis revoltas, aliviando os conflitos sociais existentes. No entanto, os escravos utilizavam estes momentos para manter viva a sua cultura e, através das suas músicas, denunciavam a sua condição e desafiavam os poderes instituídos. Como conclui Gaião (2008, p. 7) “(…) o Estado e a Igreja estabeleciam uma organização que deveria ser respeitada, mas quando a festa começava seus indivíduos estabeleciam outra função para a festa a de protesto contra os abusos cometidos pelas autoridades”. Estas festas, não deixavam de ser momentos de alegria, mas não uma alegria passiva, como era pretensão dos poderes coloniais, mas sim uma alegria resgatada e construída pelos escravos – de si, para si. Recuperando o exemplo do Carnaval, Cavalcanti (2006, p.61) menciona “O riso e a visão carnavalesca do mundo vencem o terrível, destroem a seriedade unilateral e qualquer pretensão de significação unilateral incondicional e não temporal. Liberam a consciência, o pensamento e a imaginação dos humanos”. Segundo Ferreira (2004) o Carnaval surgiu como uma resposta popular às rígidas regras impostas pela igreja durante o período da Quaresma, que afetavam acima de tudo o povo – nas suas palavras “As ruas enchiam-se de gente fazendo tudo aquilo que não se devia ou não se podia fazer durante o ano”. Por volta do séc. XIX esta festa popular acabou por ser apropriada pela burguesia que, numa tentativa de contrariar a subversão, redefiniu o modelo dos festejos, impondo-lhes regras. Atualmente, ainda que seja uma visão unificada e/ou consensual, o que podemos encontrar na celebração do Carnaval brasileiro é um misto destas duas versões.
Na sua tese de doutoramento “Uma alegria subversiva: O que se aprende em uma escola de samba?”, Ramalho (2010) explica como o Carnaval brasileiro, que culmina em desfile, não se trata de uma celebração de poucos dias. Trata-se antes de um processo que começa a ser construído em meados de março, com a definição do enredo, que marca o final de um ciclo e o início de um novo. Quando se reúnem pela primeira vez, os carnavalescos decidem em conjunto um tema e, com base nesse tema, partem para a construção da sinopse desse enredo – um pequeno texto que representa “a visão que os carnavalescos têm de um determinado tema e o modo como imaginam a narrativa desse tema pela visualidade do Carnaval que se irá construir” (Ramalho, 2010, p.20). A partir daqui, desenrola-se uma complexa produção coletiva do desfile, em que cada setor da escola é responsável por criar uma narrativa a partir da sinopse apresentada. Este processo, tão duro como alegre, ocorre durante todo o ano e leva centenas (se não milhares) de indivíduos, na sua generalidade precarizados, a investir horas a fio das suas vidas na construção desta festa popular. É comum encontrar enredos de poderosa crítica social, mas o nosso propósito aqui consiste em, acima de tudo, salientar, tal como defende Amaral (1998), a potencialidade destes espaços, onde as hierarquias sociais dos indivíduos que as compõem não se dissolvem, mas antes geram um ambiente propício à vivência intensa das diferentes condições sociais, criando um espaço de diálogo sobre diferenças e conflitos. Ainda de notar que que esta capacidade de agregar grupos heterogéneos nesta construção comunitária do evento, não pode ser ignorada enquanto forma de resistência à ditadura do individualismo neoliberal e como são um exemplo de “espaços de resistência coletiva à vida economizada e, mais do que isso, sobre espaços de sobrevivência da afirmação da alegria como regente dos modos de viver em teias complexas” (Ramalho, 2010, p. 94-95).
Alegria Perigosa
Há diversos movimentos sociais pelo mundo fora que fazem questão de incorporar a alegria quando ocupam as ruas, seja através de coreografias, elementos musicais, alegorias, cânticos inovadores, etc. Em Portugal, as marchas LGBTQIA+ configuram como um dos maiores exemplos deste tipo de luta social. Uma comunidade oprimida estruturalmente apenas por existir, a quem são negados os direitos mais básicos, sai à rua em festa para reclamar a sua humanidade e exigir avanços (ou impedir retrocessos). À semelhança do Carnaval, estas marchas não se confinam apenas a um dia, mas trata-se antes de um processo de construção coletiva ao longo do ano, desenvolvido também ele a partir de um tema. Se, por um lado, o cunho político e reivindicativo é o elemento basilar destas marchas, por outro, a alegria é uma característica indissociável do seu movimento. Ainda que numa análise algo simplista, podemos certamente refletir na possível correlação entre os pontos de contacto deste movimento com certos elementos da cultura popular e a sua capacidade de mobilização popular que, ano após ano, vê aumentar o número de participantes e, consequentemente, o seu alcance reivindicativo.
É na cultura popular – que agrega indivíduos heterogéneos em volta de um objetivo comum, que reclamam o espaço público como seu ao ocupar as ruas, que são alegres, mesmo quando tristes – onde podemos encontrar formas de potencializar a alegria. Pois ela, por sua vez, pode ser socialmente transformadora, funcionando como elemento catalisador de processos coletivos subversivos à ordem social imposta. Por outras palavras, a alegria é tanto um antídoto ao “dever-ser” imposto pelo modo de produção capitalista, como uma arma no seu combate, pois, entre outras potencialidades, configura uma afronta à condição que nos é imposta por um sistema que constantemente nos oprime.
Ainda fresco na memória coletiva está o bloqueio que, em 2023, Rui Moreira tentou levantar à realização do tradicional arraial que ocorre no final da MOP, ou ainda Carlos Moedas que, em 2024, quis impedir a celebração popular do Carnaval, bem como a realização do “Arraial do Carmo” nos 50 anos do 25 de Abril. Ainda que consideremos os motivos elitistas, há certamente um reconhecimento destas entidades das potencialidades que a alegria traz à luta coletiva. Prova disso, é que todas estas tentativas foram tão vãs como os seus motivos, e estes eventos, com mais ou menos estruturas de apoio, foram realizados com uma adesão massiva.
Foi por reconhecer essa força que, depois de uma sucessão de processos eleitorais desanimadores, com a atual escalada de violência alimentada pelo ódio que emana a extrema-direita, com direitos sociais periclitantes perante a ameaça de retrocesso, com a emergência climática a manifestar-se aqui e agora, com um genocídio em curso na Palestina, com migrantes a morrer no Mediterrâneo, perante toda a selvajaria do capitalismo – que tanto produz uma sociedade que nos oprime e adoece, como mercantiliza a nossa infelicidade produzindo agentes da positividade tóxica, promotores da autoexploração do indivíduo, que profetizam uma alquimia da felicidade como um dever individual ao alcance de qualquer um – decidimos falar de alegria.
Não com o propósito de criar uma pretensa utopia de erradicação do sofrimento adveniente das condições materiais do capitalismo através dela, mas antes de forma a reconhecer-lhe a sua força revolucionária e transformadora. Alegria como uma forma de sobrevivência, alegria como um ato de resistência.