Argélia, 10 meses depois: uma revolução com fôlego

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Artigo de Luis Leiria.


Sobre o Brexit, o impeachment e as revoltas populares do Chile, da Colômbia, da Bolívia, do Irão ou de Hong Kong, há muita informação. Mas uma das lutas sociais mais intensas é menos registada: a da Argélia. Luís Leiria apresenta o mapa do conflito.

O dia 12 de dezembro na Argélia marcou mais uma etapa no braço de ferro que vem sendo travado entre o poder e o movimento popular. Nesta data realizaram-se eleições presidenciais e um candidato, Abdelmadjid Tebboune, foi proclamado vencedor sobre outros quatro, conseguindo 58% dos votos. A abstenção teria sido de 60%, a maior desde que se realizam eleições multipartidárias na Argélia, um índice alto, sem dúvida, mas outros países já tiveram abstenções deste calibre e a vida continuou. Houve até, pela primeira vez na história, um debate televisivo entre os cinco candidatos!

Com estes dados, parece tratar-se de uma eleição normal, certo?

Errado. Nas eleições “normais” não é costume haver centenas de milhares de pessoas nas ruas garantindo que não votariam e chamando o povo ao boicote de um processo farsesco. Aliás, numas eleições “normais” não é costume que dos cinco candidatos, quatro tenham sido ministros do anterior presidente, dois dos quais primeiros-ministros, e o restante deputado do principal partido do governo por dez anos. Também não é normal que em dois distritos, paralisados por uma greve geral, ninguém tenha votado.

Uma farsa

Nada disto é normal, porque as eleições de dia 12 foram de facto uma farsa. O que afirmam os partidos da oposição que participam do Pacto pela Alternativa Democrática – que se recusaram a participar no processo fraudulento –, é que a real abstenção foi de 92%, com 8% apenas de comparecimento às urnas.

As eleições foram impostas pelo Exército Nacional Popular (ANP, da sigla em francês), atropelando um tímido arremedo de transição democrática que procurava encontrar uma saída política após a demissão de Abdelaziz Bouteflika, o presidente que, mesmo diminuído pelas consequências de um AVC, pretendera apresentar-se a um quinto mandato. O chefe do Estado-Maior do Exército, general Gaïd Salah, fez tábua rasa de qualquer transição e marcou a data das eleições. Ponto final.

A partir daí, começou o braço de ferro. De um lado o general que chefia as Forças Armadas. Do outro, o movimento popular iniciado em 22 de fevereiro, que deu origem à grande mobilização popular responsável por impedir a candidatura ao quinto mandato de Bouteflika e logo em seguida provocou a sua queda. Um movimento popular que ganhou o nome de Hirak (“movimento”, em árabe) capaz de pôr milhões na rua e de se manifestar todas as semanas às sextas-feiras (mobilização geral) e às terças-feiras (estudantes). Este artigo está a ser escrito na véspera da 44ª sexta-feira de mobilização. Dez meses.

44 semanas de revolução

Dez meses de mobilizações de massa, pacíficas mas persistentes. Pacíficas nos métodos – são verdadeiras festas, onde vão famílias inteiras, incluindo bebés de colo e idosos de cadeira de rodas. De cada vez que a polícia ensaia intervir, ouvem-se os gritos: “pacífica, pacífica”. Mas claras e radicais nos seus objetivos: o derrube de todo o sistema. Por isso rejeitaram eleições sob as mesmas figuras do regime, pois com elas nenhuma eleição seria democrática. E, na sua sempre criativa verve, não deixaram por menos: “Estado civil, não militar!”, gritam. “Generais para o lixo!”

Braço de ferro difícil: o Exército foi a coluna vertebral do Estado argelino desde a independência, em 1962. Trata-se de uma força considerável: as forças armadas argelinas contam com 520 mil militares ativos, 400 mil reservistas e 110 mil outras forças militarizadas.  Os gastos com as Forças Armadas em 2018 foram 9.600 milhões de dólares, colocando a Argélia no 25º lugar entre os países de maiores gastos militares do mundo. Em percentagem do PNB, a Argélia tem o 3º maior gasto militar do planeta (5,3%, atrás de Arábia Saudita e Oman, e à frente de Israel, que gastou  4,3% do seu PNB) e de longe o maior da África (superior ao do Egito). Os dados são do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri). O vínculo entre as Forças Armadas, o Estado e os grandes negócios num país que baseia a sua economia na extração de petróleo e gás tornam-no ainda numa força mais poderosa.

Já o Hirak conta com o apoio da esmagadora maioria do país, demonstrou um poder de mobilização inédito e uma capacidade de aguentar firme, sem esmorecer, que muitos achariam impossível. Resistiu às prisões seletivas, resistiu ao cansaço, resistiu ao quase cerco dos média, particularmente as televisões, resistiu a todas as pressões. Ajudou-o o facto de não ter uma direção visível: se existe, ninguém sabe quem é. Esta vantagem (os militares não sabem quem prender) pode-se tornar numa desvantagem mais à frente, quando o Hirak tiver de mobilizar por uma alternativa, por um programa, e não só pelo fim do regime.

Por enquanto, o braço de ferro continua: a campanha do movimento popular de denúncia das eleições conseguiu uma repercussão muito maior do que muitos esperavam; mas não suficiente para causar fissuras nas Forças Armadas que precipitassem a queda do general Salah e a interrupção das eleições. O Exército, por seu lado, não conseguiu pôr fim ao movimento. A revolução continua.

Luis Leiria é jornalista.