Argentina: de surpresa em surpresa

Os repetidos erros das sondagens encontram uma relativa justificação nesta verdadeira “dinâmica do impensável” que é a política argentina. As primárias de 13 de agosto, nas quais o candidato liberal-libertário Javier Milei irrompeu como a grande surpresa da política nacional, implicaram um verdadeiro terramoto político que abalou as estruturas do bipartidarismo mais tradicional, permitindo que uma força sem história como a La Libertad Avanza (LLA) apareça em condições de disputar as eleições presidenciais. A votação do passado dia 22 de outubro, em que venceu claramente o candidato do partido do governo e atual ministro da Economia, Sergio Massa, parecem corresponder com um pouco mais de coerência à história política nacional. Mas, mesmo assim, há ainda alguns aspetos insólitos.  

No dia 19 de novembro, haverá uma segunda volta entre Massa (que obteve cerca de 37%) e Milei (que alcançou cerca de 30%). A surpresa, desta vez, veio de um peronismo que, depois de sentir o golpe das primárias, pareceu reagir e acionou parte do seu imenso aparelho político em todo o país para garantir que o seu candidato “de unidade” se impusesse a nível nacional, recuperando mais de dez pontos em relação às primárias. A dimensão da vitória também confirma indiretamente as múltiplas acusações de cumplicidade peronista com a estrutura de Milei em diferentes distritos, justificado como uma estratégia para retirar votos a Patricia Bullrich, a candidata do Juntos por el Cambio. A coligação do ex-presidente Mauricio Macri foi a grande derrotada do dia, tendo obtido pouco mais de 22% dos votos e ficando de fora da segunda volta das eleições.

A emergência de Javier Milei nas eleições de agosto combinou raízes sociais objetivas e também fatores conjunturais. O atual governo de Alberto Fernández optou por continuar a subordinação do seu antecessor às receitas de ajustamento ortodoxo do FMI, validando os milhões de dólares de dívida ilegítima contraída por Macri e levando a cabo as clássicas receitas neoliberais para a redução do défice fiscal,  resultando numa grave estagnação económica e numa deterioração significativa dos salários reais. Isto deixou o peronismo numa crise histórica que os recentes resultados favoráveis não são suficientes para desmentir. O que se viu neste domingo foi mais um voto defensivo face à ameaça da extrema-direita do que uma manifestação de entusiasmo pelas propostas de um ministro da economia que se pode gabar de ter efetuado uma desvalorização de 22% após as primárias e uma inflação homóloga recorde de 140%.

Nas semanas que se seguiram ao seu grande resultado nas primárias, antes das quais ninguém o considerava um candidato com hipóteses, Milei começou a ser encarado mais seriamente como um possível presidente. A enorme exposição mediática que se seguiu, aliada a uma confiança exagerada nas suas hipóteses, levou a que tanto Milei como muitos dos seus companheiros produzissem uma quantidade insólita de declarações polémicas que fizeram com que um importante sector social se assustasse perante propostas que poderiam ser consideradas extravagantes na boca de outsiders afastados do exercício real do poder, mas que seriam autênticos delírios para futuros gestores do Estado. Se a emoção que dominou as eleições primárias foi a raiva, a que prevaleceu este domingo foi o medo.  

Em grande medida, isso explica também o importante desempenho de um candidato como Massa, que conseguiu impor-se claramente, apesar do peso da sua dupla função de ministro da Economia, com um histórico indefensável. Em todo o caso, se o candidato do governo ganhar na segunda volta, é evidente que estão previstas importantes reconfigurações políticas e económicas, nem todas progressistas (no seu discurso de vitória já antecipou a necessidade de avançar para regimes de regulação laboral mais modernos e flexíveis). 

O que é certo é que as eleições de novembro serão muito difíceis. A vitória do candidato do governo por mais de seis pontos deixa-o com boas hipóteses, mas a disputa pelos 22% dos votos de Bullrich, pelos 7% de Juan Schiaretti e até pelos 3% da esquerda será feroz. Uma soma artimética parece deixar Milei às portas do poder, o que poderia implicar uma derrota estratégica para os trabalhadores, já que as classes dominantes poderiam procurar desta forma resolver o impasse de forças que durante as últimas décadas têm impedido o avanço das reformas estruturais exigidas pelo capitalismo local, delegando a uma figura “externa” ao seu próprio círculo, à maneira cesarista, o trabalho sujo que as forças orgânicas da burguesia não parecem estar em condições de realizar.

Nesse contexto, esperar-se-iam evidentes ameaças aos mais elementares direitos democráticos, pelo que a esquerda não deve hesitar no seu posicionamento eleitoral, procurando com todas as suas forças impedir a ascensão da extrema-direita ao poder. Se é claro que, se queremos combater a extrema-direita a longo prazo, não podemos subordinar-nos ao “extremo centro” ou a qualquer tipo de neoliberalismo progressista, não é menos verdade que, no cenário a curto prazo, a prioridade máxima é fechar-lhes a porta, através da única alternativa pragmática viável nesse cenário: a candidatura presidencial do peronismo.  

As eleições de domingo mostraram que o nosso país não parece estar maciçamente disposto a cometer um suicídio político, demonstrando que a sociedade argentina tem importantes reservas democráticas para bloquear a extrema-direita. Este 22 de outubro foi um primeiro passo importantíssimo, mas ainda temos pela frente outra batalha chave para o futuro nacional.