Importa falar de “sionismo”, de“antissemitismo”, de confusões que oportunamente se instrumentalizam em favor de uma mera ilusão de debate, ou de um sinuoso convite para ignorar ou perverter o que importa ser discutido. O que a responsabilidade de qualquer cidadão ou cidadã que mereça tal desígnio não pode contornar, sob pena de deixar passar incólume o mais pesado drama humanitário desde a II Guerra Mundial. Para melhor enfrentar a questão importa politizá-la, conceptualizá-la – preparar o terreno para que ela possa ser discutida e disputada, sem equívocos ou manobras de diversão. Importa falar, pelo caminho, de “democracia”, de isso a que se chama “ocidente”, do modo como tais palavras se reformulam como manobras de diversão: biombos e verbos de encher para que algo não se discuta. Como princípio de resistência, antes de mais conversemos.
1) Falemos de uma confusão de natureza valorativa ou, se quiserem, de uma muito conveniente incongruência ética e cultural, que se insufla como um sapo no que se designa por “modo de vida ocidental”. Trata-se de um princípio etnocêntrico e racista, que subitamente ganhou espaço mediático e até já se insinua como uma espécie de justificativa marcial (“casus belli”, para os entendidos, entre os quais as dúzias de guerreiros de sofá que vão comentando pelos estúdios de televisão) para justificar invasões e, pelo caminho, aumentar a orçamentação da “Defesa”, enquanto se desguarnece o já emagrecido Estado Social. Falo de “modo de vida ocidental” ou, simplesmente, de “ocidente”, no modo como surgem em comentários televisivos, em responsáveis de instâncias internacionais, em documentos oficiais de organismos europeus.
2) Trata-se, como qualquer termo de bolso para uso e abuso de quem vier, de um instrumento de preguiça mental a partir do qual se definem, artificialmente e à má-fé, campos de oposição e linhas de demarcação – “blocos”, como impõe a terminologia política. Entre o “ocidente” e qualquer coisa vaga, que não chega propriamente a ter um nome agregador, estabelece-se um muro simbólico, com fronteiras definidas e culturas delimitadas, de separação entre as pessoas que prezam “liberdades”, “direitos fundamentais”, “sufrágio universal” e outros direitos quejandos, e as outras, as que depreciam tudo isso e que se acoitam perigosamente no “lado mau” da globalização, onde nunca riscaram nada. Saídos diretamente da anedota que, há bem pouco tempo, contavam acerca dos outros, responsáveis políticos e media, tendo por trampolim a agressão israelita no Médio Oriente e o que aí é conveniente justificar, redescobriram o ocidente e reabilitaram as cruzadas.
3) Tanto para justificar, como para não condenar com muita veemência, os discursos sobre a sucessiva terraplanagem de leis e de razoabilidade por parte do governo assassino de Israel, nada melhor do que globalizar a coisa e enquadrá-la nos encobertos motivos do velho racismo: surge o ocidente como expressão do que importa cristalizar, para melhor impor. Os destroços de uma história que nunca atendeu, realmente, a tais delimitações, perdem-se ao mesmo ritmo com que bombas e mísseis, caindo no Líbano ou em Gaza, como antes tombaram no Iraque, vão desfazendo os vestígios físicos dessa cultura miscigenada. Como tem sido hábito, só se consegue reivindicar o exclusivo da “civilização” descivilizando-se.
4) Venho falar-vos também de dualidade de critérios, mesmo quando não é preciso dualidade nenhuma para se verificar o apodrecimento desses mesmos critérios. Estes, que reclamam “legítima defesa”, toleram “danos colaterais” e inscrevem o massacre de pessoas que só querem viver a sua vida na circunscrição privada para o que entendem por admissível. Enquanto nos media se deixa passar uma pedagogia do massacre, onde o tal “ocidente” se faz defender queimando abrigos e estropiando crianças, ressurge o velho argumento, convertido em instrumento de pequena retórica: a crítica a Israel é manifestação de antissemitismo. Mesmo que se confunda abertamente judaísmo com sionismo, mesmo que se atropele a diferenciação necessária (e ocidental, lá está!) entre política, cultura e religião, mesmo que se oculte a matriz semita do próprio Islão, denunciando a reinante ignorância que alimenta a islamofobia, como todo o racismo, mesmo que, enfim, se contornem os próprios pressupostos éticos do judaísmo, na tentativa de justificar o apartheid e o racismo de Estado – a acusação de antissemitismo ressurge, quando tudo o resto falha. Vamos então ao argumento do antissemitismo.
5) A filósofa (judaica) Judith Butler, uma das mais sonantes vozes críticas da continuada opressão de Israel sobre a Palestina, vem insistindo na necessidade de uma diferenciação completa e rigorosa entre judaísmo e sionismo. Para Butler, esta distinção é o primeiro passo para desarmar o que identifica como forma estratégica, exercida pelos governos de Israel, para fazer entrar a religião no espaço público, tornando-a ator principal nesse mesmo espaço público. Essa entrada leva, entre outras coisas, a controlar o discurso tido por aceitável, legitimando uma ação censória que está totalmente ativada no decurso deste conflito. E é precisamente este mecanismo que permite que toda a crítica ao terrorismo de Estado levado a cabo por Israel seja imediatamente classificada como antissemita, tornando a divergência praticamente impossível, principalmente em países como Estados Unidos ou Alemanha. Mesmo se, como enuncia Butler, os pressupostos éticos do judaísmo determinam e obrigam a uma atitude de demarcação para com a violência sionista, é no campo do antissemitismo que tal atitude crítica vai ser arrumada.
6) A questão, para Butler, é clara: a violência de Estado de Israel opera em nome de que judaísmo, de que noção exclusiva de judaísmo, ao ponto de valer o rótulo de “antissemita” a toda e qualquer crítica a essa violência de Estado? Como, a partir daí, tornar evidente a ausência de sentido da acusação – de resto, grave o suficiente para não ser tomada de ânimo leve – de acordo com a qual toda a crítica a Israel derivaria de um antissemitismo, do qual António Guterres e a ONU seriam expoentes de grande relevo? Uma vez mais, permitamo-nos falar de uma confusão valorativa, de uma incongruência ética e cultural, desta vez associando a súbita febre da “ocidentalidade” com a epidemia argumentativa que é o selo do antissemitismo.
7) O sionismo não deve exercer controle sobre o significado do judaísmo, porque a religião judaica – porque a cultura judaica –, em toda a sua extensão e abrangência, não é certamente sionista. Tal como isso a que se chama “ocidente” se revela pouco redutível ao simplismo das oposições, também o judaísmo pouco se aquieta ao espelhamento no sionismo, que encobre inclusivamente o papel, especialmente incomodativo para os poderes, dos coletivos e ativismos judaicos antissionistas, que existem hoje, como existiram desde que Israel assumiu o colonialismo como estratégia para o seu exercício de poder.
8) Vem do filósofo italiano Giorgio Agamben o assinalar de uma das fatais contradições do sionismo, cuja ação corresponde a uma traição ao exílio como dimensão transversal aos judaísmos, à identidade cultural judaica. Ao identificar-se, na sua violência opressora, “com as formas mais extremas e impiedosas do Estado-nação moderno”, Israel perde-se da diáspora como um dos motivos mais constantes e mais transversais da cultura judaica. O Estado de Israel não é um ditado de Deus, nem da Bíblia, não é um espaço de concretização de qualquer prece longínqua. Quando muito, seria a negação do judaísmo, que não faz corresponder qualquer Terra Prometida a um lugar material concretizável. Lembremos que, para o sionismo, os judeus atuais descendem diretamente dos hebreus antigos, outrora expulsos da sua terra pelo império romano. Essa descendência garantiria direito de possessão do território, substituindo as populações autóctones, naquela que é uma deturpação da dimensão metafísica da ideia de “Terra Prometida”. O sionismo político surge assim como uma negação acabada do judaísmo, ou como uma versão cruel e opressora de… antissemitismo.
9) Talvez por isto mesmo, o sionismo tenha começado por prosperar em contextos não- judaicos, traduzindo-se essencialmente numa ambição de território. Realmente, nada de mais próximo das mais clássicas definições decapitalismo. A essa dimensão, contraditoriamente territorial, junta-se a tentativa de assimilação e de anulação cultural, que fecha o círculo da narrativa sionista como projeto colonial, que silencia memórias e identidades ancestrais em nome de uma dominação nacionalista e autoritária. A mundialização desta narrativa é parcela fundamental de um trajeto que faz legitimar a violência de Estado num estatuto de exceção, exercido com especial evidência desde o genocídio das populações em Gaza. Por isso, torna-se necessário falar do papel dos media, reinterpretar o que, de modo tendencioso e despudorado, nos entra todos os dias pelas televisões, pelas rádios, pelos jornais, em vagas sucessivas de complacência para com o terror sionista.
10) Vejamos, com atenção, o papel minoritário dos media alternativos ou do jornalismo independente, no modo como olham para a cobertura “mainstream” do conflito. No documentário disponibilizado pela Al Jazeera, “Inside Western media’s reporting on Gaza”, jornalistas da BBC ou da CNN, entrevistados/as sob anonimato, denunciam o processo de pressão e de manipulação a partir do qual se veicula (ou não se compromete de forma decisiva) a narrativa israelita da guerra no Médio Oriente. Este pequeno documentário parte de um pressuposto óbvio, mas cuja enunciação nem sempre tem sido evidente: os media são parte integrante de uma narrativa que tem servido para negar ou suavizar um genocídio. Quando os meios de comunicação têm todas as condições, técnicas e humanas, para reportar uma situação, esses meios passam a ser duplamente responsáveis pelo modo como essa situação é reportada. Os media são dispositivos fundamentais, parte integrante da agressão ilegal à Palestina. Difundem, mas também legitimam, e desculpam, mesmo quando noticiam.
11) Lembremos a despudorada conferência de imprensa de Yoav Gallant quando, no início do ataque a Gaza, torna claro que este seria um cerco completo à cidade, com a restrição de eletricidade, combustível, comida ou água. Todo o discurso do governo de Israel correspondia à intencional e sistemática desumanização das vítimas futuras (que a célebre frase “combatemos contra animais” materializa de forma evidente), na tentativa de legitimar a ação de extermínio. Notícias genericamente falsas, reportando tortura, decapitação e profanação de cadáveres por ação do Hamas, são colocadas à frente de qualquer outra notícia, para mais facilmente se desculpar o horror do genocídio. Tal como o próprio massacre, a força desproporcionada da imprensa ao serviço de Israel coloca o termo “guerra de informação” em plano manifestamente exagerado. Enquanto isso, o bombardeamento de hospitais e o “escolasticídio” cumprem o objetivo de neutralizar as condições de habitabilidade de todo o território de Gaza.
12) É evidente que a questão não radica apenas nos media e nas empresas que os detêm. Os Estados são protagonistas inultrapassáveis, numa novela de horror onde o cinismo e as lágrimas de crocodilo se articulam frequentemente com a falta de vergonha. Enquanto se dota um exército criminoso das armas com as quais agride repetidamente o direito internacional e os mais fundamentais princípios humanitários, lamentam-se as fatalidades e escolhe-se o lado em que se identifica a conveniente figura do “terrorista”. Pouco se fala da proposta, vinda da Comissão Europeia, do corte de fundos a programas de apoio à Palestina, mas frequentemente se rejeita embargos e penalizações a Israel. Desvenda-se a vilania das posições de meias-tintas, salvaguarda perfeita para países autoproclamados estandartes e bastiões de Direitos Humanos, entre os quais Portugal.
13) As posições, genericamente cobardes, de quem se define nesta ópera bufa como estrito servidor dos poderes, confirmam a apatia da democracia ao serviço do grotesco [Cf. Francisco Louçã (2021), O futuro já não é o que nunca foi. Uma teoria do presente. Lisboa: Bertrand, pp. 66- 7]. Netanyahu é hoje um destacado exemplo desta “soberania ubuesca”, onde a virulência se joga, reconhecidamente, como estratégia de perpetuação no poder, agravada com o objetivo de se manter longe do tribunal, que o julgará por corrupção. Milhares de vidas são mantidas reféns – incluindo os e as reféns israelitas, que o são duplamente – meros peões desta estratégia insana, do bufão sionista e seus histriónicos cúmplices.
14) Suprema e cruel ironia: falemos ainda de um último argumento de bolso, em que o Estado de Israel surge como heroica e martirizada “única democracia do Médio Oriente”. Mesmo que tenha um sistema judiciário paralelo, onde os chamados “árabes israelitas” não se podem manifestar, mesmo que sustentada no apartheid, impondo um estado de exceção permanente às comunidades árabes condenadas a sobreviver no interior das suas fronteiras, Israel seria o oásis democrático ou o bastião da soberania popular para muitos e distintos tribunos da nossa praça. Quando, em 2018, Netanyahu proclama Israel como “Estado-nação do povo judaico” colocou em letra de lei uma nação teocrática que poucas pessoas se prestam a reconhecer como tal. Antes do massacre, mesmo antes desta escalada oficial que conhecemos, o quotidiano suavizava uma violência traduzida pelo “business as usual” das prisões sem julgamento, das detenções arbitrárias, dos checkpoints na Cisjordânia ou da desumanização sistemática. É uma prerrogativa de qualquer estratégia colonial. Pela quarta vez, o criminoso Bibi Netanyahu é o rosto desta “democracia”, a que os ventríloquos de todo o mundo dão validade e expressão. Todos os dias!
15) O que é, então, este “modo de vida ocidental” que nos iniciou o argumentário? Antes de mais, não é nada de sério. É uma justificativa que mal disfarça os pressupostos etnocêntricos de onde parte, mas cuja novidade única reside no facto de ter perdido o pudor. É aqui que, apesar de tudo, ele começa a ser alguma coisa: um sintoma, uma pontada, um desafio aos mesmos princípios de razão que nele, supostamente, se acolitam. Não há “ocidente” nos mísseis de Israel, como já não houve “ocidente” na invasão do Iraque e na fúria colonialista dos supostos bastiões das (ditas) democracias liberais. O que há é um chorrilho de mentiras e de oportunistas confusões, que, enquanto se constituem como justificativas de baixa intensidade para o que não chega a ter justificação, são formas eficazes de alimentar quotidianos de violência racista, ampliados pelo combustível da dita “ocidentalidade”.