- O público não é estúpido
Importa sempre falar de arte e política. Discutir, pôr em causa, ser exigente além do catálogo ilustrativo dos “artivismos”. Nunca se gasta e dificilmente se resolve. Já muito se discutiu sobre se uma obra artística tem de ter temática política para ser arte de resistência. Inclusive se submeter o trabalho artístico a uma temática política pobremente aprofundada não seria até contraproducente e inócuo para abalar as elites culturais. Adorno (um marxista) já sugeria em 1970 que “socialmente decisivo nas obras de arte é o que a partir do conteúdo se exprime nas suas estruturas formais” (Teoria Estética) e que “o conservadorismo utilitarista dentro da arte une forças com os seus oponentes políticos contra a arte hermética” (Dialética do Esclarecimento, com Horkheimer). Boicotar o potencial transformador e experimental da arte é, além de um desperdício, uma atitude conservadora em si.
Falemos, claro, de como algumas elites podem usar o hermetismo da arte como tentativa de valorização forçada, sem que isso se traduza em qualquer acrescento. Mas não nos enganemos: é do interesse dessas mesmas elites que se acredite que são as únicas capazes de ver e pensar arte. A cultura de massas não estupidificou os públicos. É simplesmente conveniente que, em contexto de capitalismo, se acredite que as pessoas são estúpidas, incapazes e desinteressadas. É conveniente que se perpetue a ideia de que há uma “arte complicada” para usufruto das camadas burguesas, colocada em espaços inacessíveis sem qualquer mediação nem formação de públicos, e que para o resto das pessoas servirá uma versão de entretenimento decorativo. A arte didática tem uma importante tradição, mas não pode ser tudo o que entendemos por arte política, ou por fazer política na arte.
De resto, é de uma grande condescendência achar que o trabalho sobre a estrutura formal da arte é contrário à democracia e inimigo do público. Simples não tem de significar transparente, imediato ou pouco exigente. O facto de uma obra não denunciar imediatamente a sua mensagem, não significa que seja inacessível. Significa que é arte, e não marketing. Que é feita para pensar, para fruir, para rir, para discutir. Que a ideia não tem de ser entregue pelo artista em produto final, mas que pode ser pensada e inventada por quem entra em contacto com ela. E esse contacto acontece com maior naturalidade do que a burguesia formatada pensa. A ideia de que há uma “arte complicada” que só pode estar longe da compreensão do público e que portanto não é política não é útil à democratização da arte.
- Os artistas também não
Dito isto, precisamos de discutir hoje, adicionalmente, o papel que muita dita arte política® tem tido precisamente na domesticação da política de resistência. Não é possível ignorar que a ideia de arte política® tem vindo a tornar-se um produto, que pode ser vendido e exibido como a última tendência em galerias, bienais e espaços culturais patrocinados por grandes corporações, instituições financeiras e poderes políticos. Em muitos casos, aquilo que se considera arte política® (e que provoca extremo entusiasmo nos meandros de alguma esquerda) acaba por se transformar mais num estilo visual ou discursivo do que propriamente em proposta artística que de facto questiona e desestabiliza politicamente além das formas mais que usadas. Sabemos que o uso prolongado cria habituação. Há hoje uma adoção massiva de símbolos e linguagens da contestação – murais com frases revolucionárias, instalações que imitam barricadas, performances que simulam manifestações – que já não surgem como sinal de um tempo revolucionário em que todas as possibilidades e experiências estavam em aberto, mas como um constante arrastar de uma nostalgia cultural e política. Ou mesmo como um certo pedantismo burguês que se quer mostrar forçadamente popular. O discurso político torna-se mais um elemento estético, uma camada de conteúdo superficial que, em vez de provocar uma reflexão crítica profunda, acaba por reforçar o status quo de uma forma perversa. Principalmente quando a maioria dessas manifestações artísticas são feitas para circular na bolha das elites burguesas.
Muita da atual arte política® apresenta uma estética de resistência palatável, claramente familiar, imediatamente associada a um fazer arte que se associa à esquerda mas que dificilmente coloca o público numa posição de questionamento ou discussão além da mensagem fast food, what you see is what you get, acabando a falar para a bolha em constantes simulacros de participação democrática e política. A arte que amacia a consciência. São estruturas formais conservadoras mascaradas de temática progressista, mas não deixam de ser conservadoras. A política é mais do que explicar e moralizar. Acreditamos numa política que se faz, não que se recebe já feita. É legítimo querer recuperar a estética, temas, formas que associamos a uma arte política do passado ou, por outro lado, entrar na vertigem presente da arte identitária. Sabemos que artistas enfrentam, muitas vezes, condições precárias de trabalho e falta de apoio público, vendo-se pressionados a responder aos interesses do mercado, num momento em que a arte política® está nas luzes da ribalta e ocupa tantas estreias e vernissages. Mas para quê fingir que é mais do que nostalgia ou marketing? Para quê simular agitação?
- O mercado é o mais esperto de todos
Quando a mensagem política se torna uma superfície transparente sem nada consistente por baixo, é facilmente neutralizada pelo sistema que deveria desafiar. E as indústrias culturais, como sempre, sabem muito bem como lucrar com a estética da contestação, transformando-a em algo que pode ser consumido sem grandes riscos, como um circo onde se pode ver a fera de perto com a garantia de que ninguém sairá ferido. Gera-se uma dissonância em que a arte contestatária é exibida ou financiada pelas mesmas entidades que perpetuam as desigualdades que a arte tenta expor, sem que essa contradição seja assumida na maioria das vezes (mesmo que por ironia). Essa arte acaba, até de forma consciente, a permitir que o mercado lucre ou que o poder político lave a cara com a sua estética de resistência, sem que haja qualquer confronto real. Mercado e governantes até aplaudem, promovem e financiam a arte política em voga, porque é conveniente mostrar artistas que dialogam com o “espírito do tempo”, mas de uma maneira segura, controlada, que não desafia profundamente as estruturas de poder ou o status quo cultural. As instituições neoliberais compram e marketizam a estética de resistência, mas compram também a própria impotência da crítica, o silêncio, a complacência.
Este processo não é novo, e coloca os artistas numa posição difícil: como manter a integridade e o potencial subversivo de arte num sistema que procura constantemente assimilá-la e domesticá-la? Como não ser um peão no grande jogo da disneyficação do ativismo? Certamente, como em tantas outras questões: pensar política além dos seus ícones, pensar arte além da superfície, resistir além dos chavões. Seria pouco dignificante para a arte que não se esperasse mais exigência no reconhecimento destes processos por parte de quem a produz. A alienação consciente não será disfarçada pela introdução forçada de mensagens de resistência. A arte não é uma mera ferramenta da política, mas sim uma dimensão da experiência social que será tão mais política quanto menos for castrada de experiência, desconforto, espanto. Queremos uma sociedade que se habitue à cultura, não que se habitue a uma forma estática de fazer cultura.