As crises do jornalismo, os seus efeitos e o Global Media Group

            O jornalismo enfrenta há muito tempo uma série de crises e obstáculos que têm vindo a fragilizar o seu papel na sociedade. Essas crises são paralelas mas também se complementam, criando ciclos de retroalimentação (ou feedback) entre si que faz com que as crises se aprofundem umas às outras, tendo impactos significativos na sociedade.

            A maior dessas crises é a da mudança do paradigma comunicacional, que foi despoletada com a popularização da internet e em particular das plataformas de redes sociais. Demos um passo atrás para perceber o problema.

            Com o fim do feudalismo e a implementação da sociedade capitalista, ou seja, desde o começo da Modernidade, que o paradigma comunicacional das sociedades ocidentais era mais ou menos estático. Os desenvolvimentos técnicos e produtivos dos séculos XVIII e XIX permitiram que as sociedades criassem organicamente uma coisa que ainda não tinham: estruturas que permitissem uma comunicação alargada. Pouco a pouco, primeiro com os jornais, depois com a rádio e mais tarde com a televisão, foi sendo possível que um só emissor conseguisse chegar a cada vez mais receptores, instaurando o paradigma que conhecemos como ‘comunicação de massas’ através dos  mass media.

            Repare-se que, apesar de ser esta a estrutura dominante da esfera pública, não era a única. Como explica Habermas, a burguesia e a pequena burguesia utilizaram esse mesmo período temporal para desenvolver pequenas estruturas elitizadas e paralelas (a que Habermas chama ‘públicos’). Estruturas essas que, apesar de se basearem na mesma relação entre emissor e receptor, permitiam, devido ao estatuto social e económico dessas classes sociais, criar uma pluralidade contida de emissores que se influenciavam uns aos outros (em França, a comunicação por ‘públicos’ foi bastante popular. Ver, por exemplo Ilusões Perdidas de Balzac, ou Os Miseráveis, de Victor Hugo). Os ‘públicos’ traduziam-se, por exemplo, em pequenos jornais de nicho cultural, social, político ou filosófico.

            A chegada da televisão, apesar de abalar a forma estética do conteúdo que era produzido, não abala particularmente este paradigma de comunicação. Continua a haver um emissor, que regula e decide o conteúdo da comunicação, e vários receptores que a consumem. E os públicos têm liberdade de manter as suas esferas públicas como sempre o fizeram.

            Pedra no charco: a chegada da internet e das plataformas de redes sociais inverte completamente essa lógica. Toda a gente passa a ser simultaneamente emissor e receptor. O excesso de informação, que já se vinha agravando com o aumento de números de canais televisivos, rádios e jornais, explode. As estruturas dos públicos elitizam-se ainda mais, perdem aderência e tornam-se residuais.

            Porque é que tudo isto importa para perceber as crises dos media, pergunta o leitor. É evidente que a instauração de um novo paradigma de comunicação esquizofrénico, que toma a forma de uma espécie de ‘enxame’, tem sérias implicações nos media. A imprensa em particular já vinha perdendo terreno para a televisão e a rádio, mas mesmo essas deixaram de ser as principais formas de comunicação nas nossas sociedades. Pergunte-se hoje a qualquer pessoa: a principal fonte de informação são as redes sociais.

            Esta mudança de paradigma não tem só efeito na forma como as pessoas comunicam e acedem a informação. Ela coloca em risco a própria existência dos media ‘tradicionais’ (entenda-se a imprensa, a televisão e a rádio). É que as estruturas pesadas destes media – as redações, infraestruturas, distribuição, etc – são suportadas pelos lucros que cada orgão de comunicação social consegue angariar através do número de leitores, ouvintes ou espetadores. Ora, em 1996, em Portugal, circulavam noventa e três jornais por cada 1000 pessoas. Vinte e um anos depois, em 2017, circulavam onze.[1] É evidente que perante estes números, as redações não conseguem manter a sua estabilidade e que cada vez mais o jornalismo se encontra ameaçado na sua capacidade de produzir conteúdos- E por isso agrava-se ainda mais outra crise: a precarização das redacções.

            Reféns do mercado e debilitadas pela falta de financiamento, as redacções de imprensa enfrentam dificuldades na produção de jornalismo de qualidade. Com redações cada vez mais à base de estagiários, focadas em cobrir a actualidade e com dificuldade em aprofundar linhas de investigação, o jornalismo encontra dificuldades em desempenhar o seu papel de ‘quarto poder’. Isto é, de ferramenta de investigação contra os abusos de poder, a corrupção e a exploração na sociedade. Cada vez mais, as redações se dedicam apenas ao tema da “Atualidade”, e têm menos capacidade de investigar de forma aprofundada outros temas. E, ao mesmo tempo, todas dependem das agências de notícias (em Portugal, a Lusa, mas de forma geral a Associated Press e Reuters) para noticiar aquilo que não têm capacidade de fazer elas próprias. E isso significa que toda a informação passa a estar dependente de duas ou três agências para sair nos orgãos de comunicação social. Cá está então essa retroalimentação: as redações tornam-se precárias porque perdem a sua relevância, ao mesmo tempo que perdem a sua relevância por se tornarem precárias.

            Há ainda uma terceira crise a que vale a pena dar destaque: o jornalismo sempre foi dependente do mercado, e por isso, dos interesses económicos da classe dominante, mas à medida que se torna mais precário, mais vai depender desses interesses. Aliás, em Portugal, os principais grupos de media já dependem de grandes empresários. O grupo Impresa (que detém todos os canais SIC, o Expresso, e uma série de publicações de nicho) é controlado pela família Pinto Balsemão; o grupo Cofina (que detém o Correio da Manhã e CMTV, Record, Sábado) é controlado por cinco investidores maioritários cuja fortuna liquida individual nunca fica abaixo dos duzentos milhões e que detêm cargos numa série de outros ‘boards’ de grandes empresas, nomeadamente a GreenVolt e a Altri; a Público Comunicação Social, S.A. que detém o jornal Público pertence ao Grupo Sonae; o Global Media Group, que detém o JN, o DN e a TSF e uma série de publicações de nicho, foi passando entre mãos de investidores até acabar nas mãos de um grupo de investidores angolanos, entre os quais o Banco Espírito Santo, e permitiu, a partir de 2020 a compra de acções por parte do empresário Marco Galinha.

            Ora, o jornalismo dependente dos interesses de quem o financia nunca conseguirá ser crítico dos grandes grupos económicos portugueses, tendendo a ter uma posição sempre favorável aos mesmos e, portanto, a reproduzir a hegemonia da classe dominante – e se não o fizer, basta substituir a direção editorial, encontrando alguém cujos valores se alinhem mais com os do conselho da administração. Novamente a retroalimentação: numa sociedade em que o jornalismo perde o seu lugar de relevância e é cada vez mais precário, depende cada vez mais de grandes financiadores. Ao fazê-lo, o seu trabalho perde qualidade e torna-se mais precário porque fica condicionado por esses financiadores. Ao perder qualidade, torna-se menos relevante.

A importância do jornalismo em democracia

            Estabelecidas as três principais crises do jornalismo, que se alimentam umas às outras, é preciso entender-se porque é que isso importa. Para isso, olhamos para as funções que o jornalismo cumpre na sociedade.

            Apesar de todas as teorias da notícia, do jornalismo e dos media se contradizerem entre elas e terem ideias e paradigmas diferentes sobre o papel do jornalismo na sociedade, há duas principais funções de ação política que podemos sublinhar. Isto é, duas funções prácticas sobre o funcionamento da sociedade. A primeira, de que já falei, é a do «quarto poder», a segunda é a contribuição para a esfera pública.

            A teoria que estabelece que o jornalismo é o «quarto poder», a par dos poderes executivo, judicial e legislativo, integra-se na ideia de checks and balances da democracia representativa. Ela tem bons exemplos concretos nos quais se apoia, sendo o mais famoso deles o caso Watergate, no qual a investigação levada a cabo pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein levou à demissão do presidente Nixon. Nós, anticapitalistas, sabemos que a visão dos checks and balances parte de um pressuposto funcionalista ingénuo, que a sociedade capitalista se baseia num conflito permanente entre classes e que se os checks and balances não operarem com esta noção, serão apenas engodos para que algumas pessoas possam dizer : «Vêem como a nossa sociedade é democrática?»

            Mesmo assim, conseguimos compreender a utilidade e o potencial do  jornalismo enquanto «quarto poder». Ele serve, na sua melhor forma, para escrutinar e investigar o poder executivo, poder judicial, o funcionamento do sistema político, a corrupção, o tráfico de influências, e outra míriade de ameaças aos regimes políticos. Não consegue é cumprir estas funções quando se encontra altamente debilitado e influenciado por interesses financeiros, crises de legitimidade e pela precariedade laboral.

            A outra função da jornalismo é contribuir para a esfera pública e garantir a sua qualidade. Produzir conteúdos com qualidade, aprofundar debates e armar a sociedade com as armas da crítica para enfrentar a demagogia, mentiras e narrativas infundadas, como a da meritócracia. Serve também para selecionar uns conteúdos em detrimento de outros pela sua relevância e lançar debates na linha da frente da sociedade. Nesse sentido, temos bons exemplos no mundo francófono (Le Monde) e no mundo anglófono (The Guardian) com a cobertura sobre a crise climática. Mas, regra geral, é fácil de compreender que esta função está altamente debilitada não só pelas redes sociais e pelo novo paradigma comunicacional da nossa sociedade, mas também pelo facto de o jornalismo estar à mercê dos interesses económicos, o que faz com que perpetue as ideologias hegemónicas na sociedade ao invés de ter uma abordagem crítica. Nesse sentido temos em Portugal maus exemplos: o Correio da Manhã, por escolher uma lente que valoriza a violência e o imediatismo, e que semeia a desconfiança e o medo; ou o Observador, por tomar decisões editoriais que aprofundam as narrativas neoliberais e a meritócracia.

O caso Global Media Group

            Toda esta discussão surge num contexto concreto: o caso Global Media Group (GMG). Fruto dos encobrimentos do costume, a crise do Global Media Group abriu de rompante a porta para discutir todas estas crises latentes na sociedade portuguesa. O primeiro grande sinal desta crise foi a mudança das redações das publicações do GMG, que se encontravam na sede histórica do Jornal de Notícias, no Porto. A notícia foi acolhida com alguma naturalidade por parte da sociedade e protestos por parte dos jornalistas, mas a narrativa estava montada: o jornalismo já não gera os mesmos lucros que antes, e por isso era necessário cortar as despesas.

            A 6 de dezembro de 2023, a Comissão Executiva do GMG anunciava, em comunicado interno, que iria negociar, com caráter de urgência, as rescisões de até 200 trabalhadores, ao mesmo tempo que preparava uma reestruturação. Há medida que mais detalhes foram sendo conhecidos externa e internamente, as direções da TSF, O Jogo, Dinheiro Vivo e Jornal de Notícias apresentaram as suas demissões.

            Chegando ao final de Janeiro, vários jornalistas continuam sem receber os ordenados de Dezembro, que o GMG avisou não ter a capacidade de pagar. A crise está plenamente instalada e o caso do Global Media Group ganhou relevância na política nacional.

            Mas o que se passou ao certo do GMG? Fruto da opacidade da estrutura do grupo, ainda não temos muitos detalhes. Há, no entanto, dois aspetos que parecem desde já fundamentais ressalvar e que se vão tornando mais graves à medida que temos mais informação.

            O primeiro está relacionado com a gestão financeira do grupo. Evidenciada pela participação feita pelo Sindicato dos Jornalistas à Procuradoria-Geral da República, que pedia a esta para investigar as “burlas”, “gestão danosa” e “procedimentos à margem da lei” bem como “outras matérias e denúncias entretanto vindas a público neste interregno “ dentro do Grupo. Mas também evidenciada pelas próprias declarações da Comissão Executiva do GMG, que, liderada por José Paulo Fafe, acusou os outros acionistas (Marco Galinha) de protagonizarem situações “ética e moralmente condenáveis”.

            E não menos importantes são as acusações feitas por Garcia Pereira no dia 19 de Janeiro, que denunciavam a existência de transferências feitas a meio de dezembro, somadas no total de 150 mil euros, para empresas e familiares de alguns dos administradores e ex-administradores do GMG, entre os quais o próprio José Paulo Fafe. Mais, Garcia Pereira denuncia transferência feitas durante o mês de janeiro, já em plena crise. A verificarem-se verdadeiras, estas transferências significam uma espécie de saque ao cadáver do GMG, enquanto os trabalhadores são abandonados. Ai está então uma das crises do jornalismo: a precariedade profissional, que para além de ser generalizada à profissão, é agudizada neste caso.

            O segundo aspeto está ligado à interferência dos interesses económicos no trabalho editorial do GMG, em particular no Jornal de Notícias. O Conselho de Redação deste orgão de comunicação social expôs à ERC as suas preocupações que, para além da desvalorização do próprio nome do Jornal de Notícias, estão relacionadas com “questões de ingerência editorial” e da “mudança da matriz editorial”. A própria ERC, embora se desresponsabilize de analisar a precariedade laboral, em já dois processos em curso. Um relativo “ao regime da transparência” e outro a  “um outro conjunto de averiguações”. Aí está a outra crise, fruto da dependência que os orgãos de comunicação social têm dos interesses económicos.

            Só o tempo revelará se as preocupações e as acusações são verdadeiras. As acusações trocadas entre a actual Comissão Executiva, liderada por José Paulo Fafe, e o líder da antiga Comissão Executiva, Marco Galinha, provam que há certamente problemas e questões por responder sobre a gestão do Global Media Group. Quando este artigo estiver nas mãos do leitor, certamente já haverá mais informação – sabemos que quando o interior destas estruturas estão podres, rapidamente elas implodem.

            Para já, este é um caso concreto dos problemas do jornalismo abandonado ao mercado livre, aos investidores anónimos e ao capitalismo predatorial. Se seguirmos em frente sem tirar daqui consequências, esta história repetir-se-á. E estes ciclos são prejudiciais para a comunicação social, a esfera pública e a nossa democracia. É preciso mudar isso. Mas nem tudo é a perder. Os jornalistas, levados pelo momentum desta crise, marcaram greve geral. A segunda na história da nossa democracia. É preciso manter essa luta e encontrar novos horizontes e soluções para o jornalismo e para a democracia. A todos esses jornalistas que estão preparados para lutar, ofereço a minha solidariedade e a minha gratidão.


[1]Dados da World Association of newspapers–World Trends Report 1991, 1997, 2002, 2010, 2014, 2017