As duas identidades da esquerda etiquetária

As esquerdas conservadoras têm um passado e um presente, e ambos as definem como um projeto político: o seu passado é o campismo e o seu presente é o sectarismo.

A distinção política entre esquerda e direita, se bem que tivesse expressões anteriores, como a luta contra o feudalismo e o esclavagismo, ganhou a sua forma moderna com a revolução francesa. À época, a “montanha” era a esquerda jacobina e as alianças entre facções moviam-se gelatinosamente, até serem esmagadas pelo golpe de 18 de Brumário e pela vitória de Napoleão Bonaparte. Ficou a referência à geografia política da esquerda e da direita. No entanto, esse mapa mudou sempre ao longo das circunstâncias históricas: a revolução soviética redefiniu a cisão entre as duas fracções do partido social-democrata russo, os bolcheviques e os mencheviques, e aproximou da primeira uma parte dos socialistas-revolucionários, que eram então a maior força eleitoral e que organizava as massas camponesas. A esquerda alemã deslocava-se também: Karl Kautsky, que tinha sido visto como o herdeiro teórico de Engels, afastou-se do partido social-democrata em protesto contra o seu apoio à guerra e aderiu ao partido social-democrata independente, onde estava Rosa Luxemburgo (mas voltou depois ao SPD). Contudo, a partir da constituição da URSS, uma parte importante da esquerda passou a definir-se como parte desse campo político, malgrado a sua degenerescência e a repressão estalinista – Estaline fez assassinar mais comunistas no seu país do que Hitler na Alemanha. A obediência ao Kremlin passou a ser a sua identidade. É essa a origem do campismo.

Campismo

Um século depois, e 35 anos após a queda do Muro de Berlim, que simbolizou o fim desse sistema  e o início da desagregação da URSS, pode parecer um anacronismo histórico que as esquerdas conservadoras se identifiquem com um “campo” que não existe. No entanto, a fantasmagoria tem uma história e é potente: para alguns partidos comunistas, o apoio a Putin e ao regime russo é simplesmente uma continuidade e uma saudade do estalinismo e do mundo bipolar em que se organizou o seu poder militar e simbólico. É feito em nome da história, mesmo a que já terminou. Esse compromisso pode surgir de muitas formas, incluindo as mais enviesadas, como a alegação de que Putin é hoje o chefe guerreiro do combate ao fascismo e, portanto, merece condescendência em relação à repressão interna, ao discurso contra os direitos das mulheres, ao fanatismo religioso, à cumplicidade e promoção dos oligarcas e até à pilhagem dos recursos do seu próprio país. Por outro lado, a evidência é suficiente para demonstrar o paradoxo desse discurso contra o fascismo e, ao mesmo tempo, o seu empenho na vitória de Trump, no financiamento a Le Pen, na relação íntima com Salvini, no apoio à extrema-direita romena e a outras. Se há um ascenso de forças fascistas, o campo putinista é cúmplice desse processo.

Em qualquer caso, definir a política a partir de campos de obediência internacional sempre foi uma armadilha para a esquerda. Fazê-lo quando o farol é um regime autocrático e plutocrático é ainda mais bizarro e cria contradições insanáveis: quem classifica a China como o sistema socialista dos nossos dias tem que se calar quando uma empresa pública chinesa compra a EDP ou a REN, numa aplicação que resulta da sua acumulação de capital à escala internacional. O alinhamento com Moscovo na invasão da Ucrânia é outra dessas contradições, dado que o presidente russo foi explícito sobre a sua motivação: corrigir o erro de Lenine, que aceitou a autodeterminação ucraniana ao invés de manter as fronteiras herdadas do império czarista.

Além dessa prisão na obediência ao regime putinista, o campismo tem ainda um efeito dominó. Implica uma sucessão de compromissos com outros regimes que possam ter sido, ou possam ser vistos como aliados reais ou potenciais do “campo”. No caso do PCP, e também de outros partidos comunistas e forças das esquerdas conservadores, foi esse um dos factores que determinou o apoio a regimes como o do MPLA em Angola. Havia nisso uma continuidade, alguns dirigentes do movimento de libertação contra o colonialismo português tinham colaborado com o PCP durante o salazarismo e tinham vivido exilados em países de leste. Esse laço de solidariedade foi uma realidade histórica. No entanto, os processos de independência e de guerra civil levaram essas direções a escolhas, e uma delas foi o assassinato de militantes comunistas em Luanda em 1977, como foi o caso de Sita Valles. Mesmo que não houvesse esse caso, ainda assim era evidente, sobretudo com José Eduardo dos Santos, que o regime angolano passou a ser um instrumento de força para proteger a acumulação corrupta em prol das famílias dominantes. O campismo, ao inventar a imagem de um governo progressista, ocultou o roubo.

Outra das consequências do campismo é a protecção a regimes corruptos e, em particular, quando se eternizam por fraudes eleitorais. O caso atual de Moçambique é uma expressão dessa contradição. A Frelimo declarou ter tido a sua maior vitória eleitoral de sempre, com 70% dos votos; o resultado superaria o apoio obtido pelo dirigente mais popular da sua história, Samora Machel. No entanto, a evidência de fraude, a ocultação das atas eleitorais e a não verificação de urnas consolidou a certeza da falsificação dos resultados, num período em que o isolamento do regime se exprime na dimensão dos protestos populares. O mesmo padrão ocorreu na Venezuela, com a não divulgação das atas eleitorais. Assim, o apoio campista a estes regimes tem um preço: a esquerda conservadora aceita abdicar do princípio democrático da transparência eleitoral, o que tem consequências no seu discurso no seu próprio país. Esse apoio é ainda agravado pela simpatia para com o regime chinês, que é constitucionalmente de um partido único. O efeito é profundo: para o combate à vaga da extrema-direita, a desistência da regra democrática e da exigência do respeito pela verdade eleitoral é um erro que acomoda os nossos inimigos. Desse modo, a esquerda campista diz ao seu povo que dispensa a fidelidade aos direitos democráticos que foram conquistados pelos movimentos operários e populares. O etiquetarismo campista é a desistência do internacionalismo e da luta socialista, que é a única expressão realmente existente da luta democrática contra o fascismo.

O sectarismo

O campismo tem outras expressões e é sobre uma delas que quero chamar a tua atenção. Recentemente, o Partido Comunista Brasileiro sofreu uma cisão, de uma facção que se passou a designar como PCB-RR (Reconstrução Revolucionária). Não cabe contar aqui a história desse processo, nem da evolução desse partido, que em meados do século passado foi a mais importante força da esquerda brasileira. Foi também um partido campista e Luís Carlos Prestes, o seu secretário-geral, quando decidiu apoiar em 1945 um candidato do presidente Getúlio Vargas em São Paulo (e participaram juntos num comício), alinhou forças com o homem o tinha feito prender por nove anos e tinha entregue a sua mulher, Olga, que era judia e de origem alemã, às autoridades nazis (morreu num campo de concentração em 1942).

Ao chegar ao nosso tempo, o PCB é um partido menor, a sua candidata presidencial em 2022 teve 0,04% dos votos (em Portugal, até o MAS teve 0,1% nas recentes eleições). Esta cisão que sofreu tem nenhuma relevância internacional, mas serve-me somente para apontar um facto: ela nasce de um debate interno protagonizado por influencers e que utiliza a comunicação em rede social como a propulsão do sectarismo. Talvez reconheças este padrão numa política mais perto de ti, que substitui a utilização das redes sociais para comunicação pela concentração do debate político através de uma intensificação emocional em cascata virtual. Esse discurso de intoxicação pretende afastar-se das correntes com as quais o sectário poderia ter acordos pontuais na luta social, e quem assistiu ao ataque por militantes do PCP contra a escolha do Bloco de enfrentar no parlamento o discurso provocatório das direitas sobre o 25 de novembro teve o retrato do que é esse sectarismo infantil.

O meu ponto é também este: o próprio discurso sectário precisa de se colocar num lugar inexpugnável e é por isso que se intensifica nas redes virtuais. Vive melhor num espaço público que é privado e o uso das redes facilita a sua agressão e o discurso apocalíptico, dado que ali é natural gritar para procurar alguma atenção. Ora, se a política se torna uma sobreposição de gritos no mundo virtual, como é o caso brasileiro referido ou este exemplo de multiplicação de insultos sobre o 25 de novembro, fica contaminada por um processo de intoxicação. O espaço virtual deforma todo o discurso político e a sua racionalidade de mobilização social. De facto, é manipulado pela forma moderna do capital e, para resumir, segue o modelo do narcotráfico: a rede social oferece um suporte universal para grande parte da vida humana, constituindo-se assim como uma realidade paralela, que selecciona atividades de alta intensidade emocional; baseia-se na difusão de uma droga alucinógena (os utilizadores têm acesso a produtos e ações que fazem libertar dopamina, o neurotransmissor que nos oferece o prazer da recompensa); é dominado por empresas gigantes que controlam o tráfico-tráfego; cria-se assim uma dependência que se reproduz em ansiedade e perda de competências sociais; e reproduz-se em múltiplos meios de diversão, de trabalho e cultura, incluindo o engajamento em sistemas que prometem mudanças na vida a partir da submersão no mundo virtual. Esta magia estabelece o indivíduo sem individualidade: o protótipo do habitante do metaverso é uma nova espécie, nascida da mercadorização da atenção, do turismo do conhecimento trivial, da degradação da linguagem e do colapso da noção do tempo. Esta é uma forma de universalização do capitalismo, que alcança e submete tudo e todos, vampirizando as emoções e pensamentos. Nesse mundo, o político da rede virtual é um sectário por natureza.

Se o campismo é o que define a esquerda conservadora no mundo e se a sua linguagem é a ilusão da guerrilha virtual, nada lhe sobra de um projeto socialista.