As prisões entre o Purgatório e o Inferno

Em 1862 Victor Hugo lança um romance que abala o universo da literatura através da denúncia da desigualdade social em França no XIX. “Os Miseráveis” principia com o acompanhamento de Jean Valjean, libertado somente dezanove anos após a sua prisão por ter roubado um naco de pão de modo a resgatar a sua família da morte por desnutrição. Valjean paga caro pelo seu crime e toda a narrativa que se desenrola a partir daí é a da sua redenção. E os ecos de Victor Hugo interpelam-nos: tinha de ser assim?

A narrativa católica ensinou-nos durante séculos de que temos de pagar pelos nossos pecados. Temos de nos purgar deles através de práticas, como o trabalho e a penitência, que limparia a nossa alma. E precisamos, inclusive, de nos exilar da sociedade como membros de direito pleno. Nos sistemas punitivos que existem em maior representatividade por todo o mundo, determina-se que o ênfase nos objetivos do sistema se localiza na otimização e maximização da penalização e da punição de quem incorreu em incumprimento, estabelecendo-se o castigo como meta principal para restabelecer a ordem moral.

Dois casos, dois exemplos

EUA: case-study para a punição

O país possui duas prisões na lista das cinco “mais terríveis” do mundo e tem a maior população carcerária do mundo com 1.6 milhões de pessoas, segundo os dados de 2016.1 Os níveis de segurança e de higiene têm sido largamente criticados, sendo as prisões por vezes tão incapazes de proteger os reclusos da violência física e sexual que os mesmos começam a ansiar a solitária como uma forma de “salvação”. Esta última prática tem sido tão violenta fisicamente, psicologicamente (e tão longa, por vezes) que a própria ONU a pretende considerar uma violação aos direitos aos direitos humanos.2

Autoras como Angela Davis, uma célebre revolucionária antirracista, estabeleceram análises lúcidas sobre a natureza do sistema prisional e carcerário norte-americano, através do entendimento da influência do imperialismo. Nos Estados Unidos a 13ª emenda inserida em 1876 é crucial para entender o modo como se deu o crescimento exponencial da população prisional, maioritariamente constituída por jovens não-brancos. Esta estabelece que

Emenda XIII3

Secção 1′

Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravatura, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.

Esta inserção legal, apesar de ter abolido a escravatura, tornou possível a adoção de medidas racialmente discriminatórias, como os Códigos Negros pós-Reconstrução e as Leis Jim Crow , juntamente com práticas trabalhistas sancionadas pelo Estado, como aluguer de condenados, continuando a forçar muitos afro-americanos ao trabalho involuntário durante décadas. Este é um caso paradigmático de como o “sistema industrial carcerário” do presente mantém uma relação seminal com o passado colonial escravocrata e racista do país.

A análise das práticas prisionais norte-americanas levam-nos a fazer a seguinte questão: funciona? Um sistema de punição tão violento é eficaz a evitar a reincidência dos atos criminosos?

Pela taxa de reincidência (76.6 % segundo os dados de 20154), o número de reclusos e pelas exigências mais ou menos revolucionárias de transformação do modelo prisional (com a exigência do fim das prisões privadas) diria pessoalmente que não. Mas fica para o leitor aferir essas conclusões.

Noruega- A prisão de Halden

A Noruega é um país caracterizado economicamente por uma elevada taxação e, simultaneamente, por investimentos públicos da mesma escala. Deduz-se, deste modo, haver um elevado grau de confiança nas estruturas governamentais. Tendo em mente esta contextualização histórico-social podemos mais facilmente enquadrar os valores de reconciliação de perpetradores de crimes com representantes da sociedade civil, sujeitos a um macro valor que esta sociedade nórdica determina como objetivo fundamental deste setor: a reabilitação integral dos reclusos.

No caso do sistema prisional norueguês, podemos destacar as instalações da prisão de Halden, uma prisão com três unidades que sobressai em relação às usuais prisões punitivas que constituem a “norma” prisional. A partir de um design que as assemelham a uma vila, as instalações estão projetadas de forma a estimular a vida em sociedade fora da prisão. Em relação aos equipamentos, podemos ainda salientar algumas particularidades em relação à prisão de justiça reabilitativa, tal como uma cozinha completamente equipada, televisões nos quartos dos reclusos, um ginásio equipado com uma parede de escalagem, um estúdio de gravação de música e uma estação de rádio. Estes são apenas alguns dos exemplos de equipamentos da prisão de Halden, essenciais na construção de um ambiente que encoraje a participação ativa dos reclusos em atividades sociais reabilitativas, produtivas e educacionais.

Nos sistemas prisionais a expressão mais evidente de estrutura e poder localiza-se na posição dos guardas e na relação que estes definem com os reclusos. A forma como estes interagem com os presos, por exemplo, na prisão de Halden, denomina-se por “supervisão direta”, caracterizando-se por segurança dinâmica, partilhando momentos de convívio e aprendizagem coletiva. Um papel social completamente diferente do desempenhado num sistema punitivo, em que os guardas simbolizam a face humana do caráter mais vingativo deste sistema.

Será também indispensável incluir as relações estabelecidas entre o grupo dos guardas prisionais e o grupo de reclusos. Ao contrário do que se passa no regime punitivo, neste regime e tomando como exemplo a prisão norueguesa, a relação dos guardas com os prisioneiros é marcada pela descontração convivial. Apesar de ser uma prisão de segurança máxima, ambos os grupos se cruzam frequentemente e participam em atividades conjuntamente. É possível evidenciar uma certa horizontalidade na relação entre os dois grupos, contrariamente à estrutura hierárquica e de superioridade guarda-recluso, usada como arma para impor autoridade, frequentemente presente no regime exclusivamente punitivo.

Romper o fatalismo

Os exemplos demonstrados estão embrenhados num contexto muito específico nacional e cultural. São, no entanto, o dia e a noite em termos sistémicos. Se há algo que esta experiência comparativa nos pode ensinar é que há diversos modelos prisionais em que as prisões não estão entre o purgatório e o Inferno. Podem, afinal, ser espaços nos quais quem entra não tem de perder a sua dignidade.