O aumento da imigração tem sido capitalizado pela extrema direita para mobilizar ressentimentos, que galopam pelo terreno fértil de um povo com um passado colonial mal resolvido. Ao mesmo tempo, a notícia de que Portugal é o país da União Europeia do qual mais se emigra lembra-nos que este país “à beira mar plantado” não está, afinal, banhado por um mar de rosas. Entre quem chega, quem parte e quem fica, é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa.
Ainda que historicamente a emigração portuguesa tenha tido momentos mais altos do que outros, há muito que a emigração cobra um papel importante na nossa identidade coletiva. É difícil encontrar um português que não tenha familiares emigrados pelo mundo, ou que não conheça, mesmo que não em primeira mão, as dificuldades inerentes à partida.
Até aos anos 60 do século XX, a emigração portuguesa foi sobretudo intercontinental, tendo como principais destinos o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá. Em quarto lugar, estava a Venezuela, onde o meu bisavô desembarcou em 1957. Após a Segunda Guerra Mundial, em especial nos anos 50, com alguma quebra nos anos 60, destaca-se também a migração, dirigida ou voluntária, para as colónias portuguesas, em especial para Angola e Moçambique (colonialismo de povoamento).[1] Foi o caso dos meus avós. Sendo parte do projeto colonial da ditadura fascista portuguesa, estas migrações não foram devidamente contabilizadas, mas sabe-se que tiveram uma dimensão muito menor do que a emigração para o estrangeiro.[2] Após os anos 60, até ao 25 de abril, os países de destino passaram a ser europeus, sobretudo a França e Alemanha, para onde se migrava muitas vezes a salto, isto é, de maneira clandestina.[3] Fugia-se à ditadura, à miséria e a uma vida sem horizontes, assim como à guerra colonial. Nos locais de destino, esperava-os uma vida dura: primeiro, nos bidonville, depois, em bairros sociais, em trabalhos de desgaste rápido, em fábricas e na construção civil. Em geral, os portugueses que emigraram sofreram discriminação e exclusão social que, mais tarde ou mais cedo, foi transferida para outros alvos convenientes. Entre 1950 e 1974, saíram das aldeias e cidades portuguesas, sobretudo dos meios rurais, mais de 1.8 milhões de portugueses.
Após o 25 de abril de 1974, a emigração abrandou substancialmente. Afinal, foi nos anos que se seguiram à Revolução que se criaram as bases dos serviços públicos essenciais, que ainda hoje temos. A esperança num país melhor motivava a que se ficasse. No imediato, deu-se também um movimento substancial de regresso: das colónias e do exílio, ambos por motivos políticos, embora muito diferentes.
A emigração é retomada na viragem do milénio. Em democracia, o grande pico de emigração dá-se na sequência da crise das dívidas soberanas, durante o governo de direita liderado por Passos Coelho, com a implementação – além da troika –, das medidas de austeridade em Portugal. Na primeira década do século XXI, sob uma governação neoliberal, as promessas de abril pareciam mesmo “um sonho lindo que acabou”. Só entre 2011 a 2015, emigraram mais de 586 mil portugueses. Em 2013, houve mais de 120 mil saídas. Foi no rescaldo dessas políticas, em 2017, que também eu saí. E como muitos outros, essa emigração, que imaginei que fosse temporária, foi-se transformando em permanente. Durante seis anos, até 2016, o balanço migratório português foi negativo. A direita conseguiu a proeza de tornar a vida em Portugal tão insuportável, que não só a emigração aumentou brutalmente, como a imigração se reduziu. Ainda que alguma da emigração atual seja qualificada, a maioria dos emigrantes portugueses não são pessoas licenciadas.
A breve história da emigração portuguesa que aqui conto leva-nos ao título mais badalado das últimas semanas: “Portugal é, em termos relativos, o país europeu com mais emigrantes da Europa”. Mas não devemos esquecer o subtítulo – “mais de um terço dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos vivem hoje no exterior” -, nem que políticas nos levaram a este desvio-padrão.
Diz-nos o Observatório das Migrações que Portugal flutua “entre períodos com mais saídas de portugueses do que entrada de estrangeiros, e períodos em que recebe mais migrantes”.[4] Falemos então de imigração e lembremos alguns factos. Primeiro, só muito recentemente é que Portugal se tornou um país de imigração. As nossas migrações refletem, no fundo, a realidade de um país semi-periférico. No topo dos países mais pacíficos do mundo, rotulado como “país desenvolvido”, com relativa hegemonia e uma política de imigração mais progressista do que a das contrapartes europeias, Portugal afigura-se cada vez mais como um bom país de destino, permanência e pertença. Tal como os portugueses emigram sobretudo para países com um Índice de Desenvolvimento Humano superior, o mesmo se passa com quem chega.
Contudo, essas vantagens contrastam com uma realidade de baixos salários (com pobreza no trabalho, inclusive), uma crise na habitação aguda, e baixo poder de compra, que afastam portugueses, e potenciais imigrantes, para outros destinos. Isto leva-nos ao segundo facto: ao contrário do que se quer fazer parecer, Portugal está entre os países da União Europeia com menor percentagem de estrangeiros residentes. Dos 27 estados-membros, ocupamos o 18º lugar. Em 2022, diz-nos a Eurostat, apenas 6,8% dos residentes em Portugal eram estrangeiros.[5] Durante a crise, não perdemos só emigrantes, cujo pico de saídas foi em 2013, perdemos também entradas, cuja quebra foi em 2012. As nossas migrações também refletem um trabalho inacabado de inversão da austeridade, da devolução de rendimentos e de investimento nos serviços públicos. Quem fica e quem chega enfrenta diariamente as consequências da desregulação laboral, da precariedade e dos baixos salários. No caso de quem chega, os casos de exploração laboral são particularmente gritantes, e muitos estarão ainda por denunciar.
De pouco importa tecer considerações sobre a suposta utilidade de quem chega, sobre as contribuições para a segurança social, ou sobre o empurrão que a população imigrante dará a um país cuja demografia periga. Se por um lado servem de argumentos contra a extrema-direita, por outro, pecam pelo utilitarismo e por fazerem distinções entre “bons” e “maus” migrantes. A melhor política de integração e de combate à discriminação é a de uma abordagem assente em direitos. A melhor política de fixação também. Precisamos, em Portugal e na União Europeia, de vias migratórias legais e seguras, que travem o flagelo do tráfico humano e do trabalho forçado, como é o caso na agricultura portuguesa, e as violações de direitos humanos, como é o caso no Mar Mediterrâneo e no deserto, no norte de África. Como precisamos de um Estado social forte, que garanta uma vida boa e digna para toda a gente, sem excepção. É isso que nos une.
[1]https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/ClaudiaCastelo.pdf; http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1224258510R3rFG4jc9La79ZA4.pdf.
[2] https://journals.openedition.org/lerhistoria/2033?lang=en; https://journals.openedition.org/lerhistoria/1950?lang=es#ftn17
[3]https://observatorioemigracao.pt/np4/file/9573/Atlas_Emig_Port_EBOOK.pdf; https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/68999/1/2020_Cabecinhas_Memorias-do-salto.pdf.
[4]https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/179573/Estat%C3%ADsticas+de+Bolso+da+Imigra%C3%A7%C3%A3o+2023_CRO_online.pdf/54dae394-0343-444b-809c-c1b6bd3a2433
[5]https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/383402/Relatorio+Estatistico+Anual+-+Indicadores+de+Integracao+de+Imigrantes+2023.pdf/a9a05525-889e-4171-8066-6d7217416664