Ao longo da história, o progresso social, político e económico alcançado pelas mulheres tem suscitado reações negativas protagonizadas sobretudo por homens. Os grupos masculinos pré-internet ancoravam-se numa visão biologizante das diferenças entre homens e mulheres. Afirmando o essencialismo e identificando a diferença feminina como inferioridade, procuraram reforçar o poder patriarcal e restringir o acesso das mulheres a direitos. Hoje, essas visões são retomadas por um conjunto disperso de grupos online – a “manosfera” – que justifica a sua existência com a necessidade de defender os direitos dos homens, que consideram estar sob ataque. No centro desta distopia está a ideia de que os homens não têm privilégios sistémicos, estão, pelo contrário, à mercê dos caprichos das mulheres, que se aproveitam deles, a menos que estes afirmem o seu domínio e reponham o que consideram ser a ordem natural das coisas.
A manosfera tem um léxico próprio que dá corpo ao modo como os seus integrantes veem o mundo, o seu lugar no mundo e as inter-relações que nele constroem (ou não constroem). A linguagem da manosfera favorece uma cultura identitária ancorada na exclusão, na depreciação (sobretudo das mulheres, mas também dos homens que escapam à masculinidade hegemónica), no poder e no supremacismo masculino, contribuindo para instalar e legitimar uma narrativa de manipulação, radicalização, ressentimento, ódio e violência contra as mulheres.
As palavras não são neutras, andam de mãos dadas com a ideologia. Conhecer a linguagem cifrada da manosfera permite-nos reconhecê-la e identificar discursos e práticas potencialmente perigosos e pode também ajudar-nos a construir pontes de diálogo com jovens que se deixam seduzir por estes conteúdos, assim como com os que lhe são mais vulneráveis.
Incel
Abreviatura de “celibatário involuntário”. Os incels criam a sua identidade em torno da incapacidade que têm em estabelecer relações sexuais e românticas com mulheres. Podem culpar-se a si próprios e à sociedade, mas, geralmente, culpam-nas a elas e à sua emancipação.
O termo incel surgiu no final da década de 1990 no site Involuntary Celibacy Project(Projeto CelibatoInvoluntário), criado por uma estudante universitária canadiana, que procurava ajudar pessoas a enfrentarem dificuldades em relacionamentos amorosos e íntimos e constituir-se como um espaço de partilha de experiências e ansiedades sobre relações amorosas. Todavia, no início dos anos 2000, espaços como este começaram a mudar radicalmente – passaram a ser menos moderados, permitindo visões misóginas, reconstruindo-se como lugares de declaração de ódio e de guerra às mulheres. Hoje, os fóruns incel são predominantemente dominados por homens, estão repletos de misoginia e estereotipia e neles campeiam, inclusivamente, discursos pró-violação e assassinato de mulheres.
Red pill e blue pill
Termos com origem no filme Matrix (Lilly e Lana Wachowski, 1999). Nele, o protagonista tem de escolher tomar um de dois comprimidos. Se tomar o azul, continuará a existir no mundo tal como o conhece, mas que é, na verdade, uma simulação controlada por máquinas conscientes que escravizaram os humanos. Se tomar o vermelho, será libertado para o mundo real. Na manosfera, os que tomam a pastilha vermelha (redpilled) passam a ver o mundo como realmente ele é: um lugar onde os homens estão social, económica e sexualmente
à mercê dos desejos e caprichos das mulheres e das feministas. Os red pillsveem-se como soldados de uma revolução cujo objetivo é (voltar) a subjugar as mulheres.
Alfa e beta
A manosfera vive obcecada com poder, prestígio e hierarquia, por isso o termo “alfa” lhe é tão caro. Este tem origem na biologia, nomeadamente no estudo de alcateias, e refere-se ao macho socialmente dominante. O conceito foi estendido ao estudo de outros animais, chegando à primatologia, que o tem criticado por ser demasiado simplista e o tem desafiado sobretudo na sua transposição para as sociedades humanas. Entre os primatas, não só há fêmeas alfa, como, por exemplo, os machos alfa também protegem os mais fracos, interrompem lutas, mantêm o grupo unido e têm sentido de responsabilidade e empatia. Não são, portanto, ditadores. O conceito foi importado pela Seduction Community(Comunidade da Sedução), um espaço organizado para partilha de dicas sobre como atrair e seduzir mulheres, que supõe erradamente que os machos alfa estão sempre no comando, podem escolher as suas parceiras sexuais e têm o controlo total de si próprios e dos outros. Para além de ser falacioso designar como virtuoso um comportamento porque ele repete algo que ocorre na Natureza, deve igualmente sublinhar-se a seletividade dessa designação, já que quem vê competição no mundo animal é incapaz de nele ver cooperação. No entanto, há na Natureza vários exemplos de cooperação – primatas, leões, elefantes e insetos que vivem em colónias cooperam – e até sabemos que foram precisamente a cooperação e a empatia dois dos fatores que permitiram aos humanos transformar o seu programa genético aberto em vantagem evolutiva.
O conceito alfa foi introduzido na política pelos Republicanos (EUA) na década de 1990 e faz hoje parte de um programa ideológico conservador e antifeminista, em que se enquadra a manosfera.
Por contraponto ao macho alfa, na manosfera, os machos “beta” são aqueles que são física e psicologicamente débeis, sexualmente incompetentes, fisionomicamente pouco atraentes, tímidos e submissos, faltando-lhes as qualidades necessárias para atingirem a “masculinidade a sério” (ou hegemónica). Os incels identificam-se, geralmente, como machos beta. Ser ou tornar-se alfa é a aspiração dos frequentadores da manosfera. E ser macho alfa é o figurino dos influencersnestes espaços.
Chad e Stacy
A hierarquia da manosfera e a primazia da aparência sobre a personalidade podem ser observadas nas caricaturas de Chad e Stacy. Chad é o “alfa supremo”, o homem viril, poderoso e sexualmente atraente por quem Stacy e as outras mulheres se sentem atraídas. O termo “gigachad” refere-se ao mais alfa dos machos alfa. Stacy corresponde a uma idealização de feminilidade: superatraente e sexualmente desejável, inalcançável aos homens que não sejam Chad.
Os chads são o oposto dos incel, que podem a eles referir-se pejorativamente ou com admiração. Há também a versões racializadas de Chad, como Chadpreet, Chaddam, Chang e, em alguns casos, Tyrone. Baseadas em estereótipos racistas são um exemplo de como a cultura incel estende a misoginia a outras formas de preconceito. Stacy é o equivalente feminino de Chad. Por norma, as stacys são referidas de forma mais negativa do que os chads. São frequentemente caracterizadas como bonitas, hiperfemininas, mas burras, frívolas e promíscuas. Os incels acreditam que as stacys apenas se interessam por chads (alfas). Simultaneamente objetos de desdém e de desejo, Chad e Stacy são os arquétipos a partir dos quais se constrói e alimenta a misoginia.
Teoria 80/20
Teoria que circula com frequência na manosfera e sustenta que 80% das mulheres desejam apenas os 20% dos homens mais atraentes (chads), enquanto os outros são ignorados e rejeitados. É uma visão simplista das relações interpessoais, sem nenhum respaldo empírico, e reforça o discurso de frustração e revolta, fortalecendo o ressentimento masculino. As frustrações masculinas são projetadas contra as mulheres, que consideram responsáveis pelo seu insucesso amoroso/sexual e representam como interesseiras e superficiais.
Cuck
Abreviatura de “cuckold”, que significa homem cuja esposa lhe é/foi infiel. Nos fóruns online, “cuck” é, pois, sinónimo de “otário” e “corno”. O termo está fortemente associado a um subgénero de pornografia, a pornografia de humilhação, no qual o homem obtém prazer sexual ao observar a sua parceira a ter relações sexuais com outro homem. É utilizado como insulto, exatamente porque a ideia de permitir que a parceira tenha relações sexuais consentidas com outros homens vai contra a sexualidade heteronormativa e o princípio de controlo masculino sobre os corpos femininos. Em alguns casos, este tipo de pornografia tem também uma dimensão inter-racial, contribuindo para a afirmação de estereótipos racistas, como o da hipersexualidade dos homens negros.
(N)Awalt
(N)Awalt corresponde a (Not) All women are like that[(Nem) Todas as mulheres são assim] e é usado para generalizar e estereotipar as mulheres. A forma mais comum, “awalt”, é frequentemente utilizada para atribuir estereótipos negativos às mulheres. Negando a sua individualidade, o termo é utilizado para sugerir que todas as mulheres são frívolas, mentirosas, sexualmente promíscuas, movidas por emoções (e não pela razão), interesseiras, etc. Awalt é também utilizado para enfatizar que os homens são tudo o que as mulheres não são – morais, racionais, inteligentes, leais, honrados e individualistas.
Femoids, foids ou FHO
Abreviatura de female humanoids(humanoides femininos) ou female humanoid organism(organismohumanoide feminino). Estes termos representam as mulheres não só como seres inferiores aos homens, mas também como seres de humanidade duvidosa, isto é, seres quase-humanos.
Feminazi
Rush Limbaugh, um popular radialista estado-unidense, usou o termo pela primeira vez em 1990 para se referir às mulheres que organizaram e participaram num protesto de defesa do direito ao aborto. Esta reivindicação foi comparada por Limbaugh ao Holocausto. É uma comparação absurda e anti-histórica, pois não há simetria possível entre feminismo e nazismo, entre uma proposta que defende o direito à autodeterminação sexual e reprodutiva e outra historicamente marcada pelo genocídio e por uma política eugenista de aborto e esterilizações forçados. O feminismo, qualquer uma das suas versões, está nos antípodas do nazismo.
As legislações que permitem o aborto em caso de malformação congénita não o impõem ou o tornam obrigatório, antes o garantem como direito individual. O aborto e as esterilizações forçados são a política eugenista dos Estados totalitários, racistas e colonialistas. Assim foi na Alemanha nazi e assim é ainda em tantas “democracias”. São uma prática de engenharia social baseada em preconceitos classistas, capacitistas e racistas. Sem o seu consentimento, nos EUA esterilizaram-se indígenas e negras; em Israel, judias etíopes e palestinianas; na Lapónia, mulheres sámi; na Suécia, ciganas; na Austrália, aborígenes. Pobres, trabalhadoras do sexo, ciganas, indígenas, negras, homens trans e pessoas com deficiência têm tido os seus
direitos sexuais e reprodutivos violentamente atropelados em nome do darwinismo social, uma teoria pseudocientífica fascista que extrapolou a teoria da Seleção Natural de Darwin e a aplicou às sociedades humanas, legitimando hierarquias sociais e práticas coloniais, racistas e capacitistas. Contra todas estas violências, levantam-se as feministas. Não é, pois, por falta de informação, nem por ignorância, que o termo feminazi foi cunhado e é usado até à náusea. Ele é um insulto e parte da guerra contra as mulheres e o seu direito à autodeterminação sexual e reprodutiva.
Hipergamia
Termo importado da biologia animal e aplicado pelos incels e outras comunidades da manosfera às mulheres. Hipergamia significa, neste espaço, “acasalamento ascendente”. Os incels acreditam que as mulheres são hipergâmicas e, por isso, procuram sempre relações com homens de estatuto superior ao delas ou ao dos homens com quem estão atualmente. Esta crença estereotipa as mulheres como desleais, oportunistas e gananciosas, razão pela qual os incels se lhes referem como branch-swingersou vine-swingers, isto é, mulheres que saltam de relação em relação numa busca oportunista de melhores opções alfa – dinheiro, aparência e estatuto –, descartando vários homens ao longo da vida.