Cada macaca no seu lar 

Confesso que quando ouvi pela primeira vez falar na proposta da criação do estatuto da “mulher dona de casa” fui assaltada por um turbilhão de ideias misturadas. Na minha cabeça, Caetano e Gil começaram a entoar “Chô, chuá / Cada macaco no seu galho / Chô, chuá / Eu não me canso de falar / (…) / Esse negócio da mãe preta ser leiteira / Já encheu sua mamadeira / Vá mamar noutro lugar”, enquanto me investia a desconstruir, palavra a palavra, o nome da proposta. “Mulher dona”… Dona do quê? Dona do seu corpo! “Dona de casa”? De que casa, se o salário não chega para pagar a renda ou o empréstimo?

Brincadeira à parte, creio que vale a pena analisar a proposta, até porque o seu surgimento não me parece inocente ou desgarrado. Parece-me, antes, que a proposta pretende constituir-se como uma referência alternativa a outras que vêm sendo discutidas no movimento social e à esquerda e disputadas social e politicamente, em concreto, o Serviço Nacional de Cuidados.

O movimento tradwife e a romantização do patriarcado

No final de 2010, surgiu, nas redes sociais dos Estados Unidos, um movimento que se reivindica do feminino por contraposição ao feminismo e que acusa o feminismo destruir e esvaziar a verdadeira essência feminina, forçando as mulheres a serem financeiramente independentes e intelectualmente emancipadas. 

Este movimento de esposas tradicionais romantiza e recupera o ideário e os costumes da propaganda dos anos 1950, reafirmando estereótipos e aceitando as hierarquias de género impostas pelo patriarcado: domesticidade, reprodução da espécie, cuidar de ascendentes e descendentes e submissão aos maridos. 

O seu modo de comunicação recupera a estética dos anos 1950 – mulheres-mães domésticas felizes e voluntariamente submissas ao marido –, que faz acompanhar de provocações ao modo de vida atual em que as mulheres se dividem entre a maternidade e a carreira ou se investem exclusivamente na carreira. Há um julgamento moral destas mulheres – que são acusadas de imitarem padrões masculinos e de sacrificarem/corromperem a sua feminilidade – e uma proposta de salvação: ser esposa num casamento indissolúvel, construir uma família e cuidar dela. 

No seu imaginário, existem mulheres de verdade e mulheres corrompidas, sendo as de verdade aquelas que se comportam com discrição e elegância, se preocupam com moda e beleza, se submetem voluntariamente ao marido, justamente porque sabem que a sua função é serem mães e domésticas. Belas, recatadas e do lar, como queria Bolsonaro.

As tradwives são um movimento político da direita alternativa (alt-right) e assim devem ser entendidas. Nacionalistas, reacionárias, supremacistas, saudosistas e antifeministas. É um movimento de mulheres brancas heterossexuais que se julgam as únicas com direito a desfrutar do “sonho americano” e a gerar vidas que importam. Se perceberem neste ideário uma relação com a teoria da conspiração da grande substituição, não é coincidência. 

Apesar de ser um movimento muito americano, creio que deve merecer alguma da nossa atenção, não só pelo efeito de contaminação, mas para tentarmos perceber porque consegue seduzir mulheres e mobilizá-las em torno de ideias tão recuadas como, por exemplo, #EqualityIsForUglyLosers, #TraditionalGenderRoles ou #SubmissiveHousewife.

A responsabilidade do centro liberal

Num artigo escrito logo após a vitória de Trump, a filósofa marxista estado-unidense Nancy Fraser refere que a construção do neoliberalismo progressista (Partido Democrata) assumiu os discursos da identidade sem, contudo, trazer para a disputa a questão da redistribuição económica e da participação paritária. O trumpismo foi vencedor com a proposta de continuidade das políticas neoliberais democratas, a que juntou uma feroz perseguição às mulheres e às minorias e a proposta de restrição dos seus direitos. Em contraponto, o Partido Democrata posicionou-se no campo contrário, no campo da defesa dos direitos, mas o seu discurso foi vazio, porque exclusivamente proclamatório. E a proclamação de princípios pode até contribuir para mais justiça simbólica, mas muito dificilmente altera a condições de vida concretas das mulheres. E é perante essa ausência de proposta e de esperança num futuro transformador que o discurso do ódio e do bode expiatório tem condições para se agigantar.

O centro liberal (ou o neoliberalismo progressista, como lhe chama Fraser) foi parceiro na consignação de muitos direitos, mas, quando poder, demitiu-se de criar as condições materiais para que esses direitos fossem reais. As mulheres que o progressismo libertou da domesticidade passaram a acumular trabalho remunerado e trabalho doméstico e do cuidado e, por isso, não é completamente estapafúrdio que, face à exaustão, se perguntem se valeu e vale a pena. 

O problema não é, pois, as identidades subordinadas emergirem e reclamarem visibilidade e direitos, o problema é o neoliberalismo. Uma democracia que não investe em serviços públicos de resposta universal – das creches aos serviços de apoio domiciliário – condena as mulheres à exaustão e torna possível ponderar abrir mão da emancipação. O reconhecimento, ou justiça identitária, é facilmente assumido pelo centro liberal, mas a redistribuição não. E uma dimensão sem a outra tornam ambas insuficientes e impedem a mudança.

O estatuto da “mulher dona de casa”

Por cá, o movimento tradwife tem pouco impacto, porque, creio, é entendido como aquilo que é – um delírio –, tendo em conta o preço da habitação e o valor dos salários. No entanto, a proposta de criação de um estatuto para a “mulher dona de casa” feita pelo Movimento Ação e Ética (MAE) entronca neste ideário, no sentido em que valida os papéis de género atribuídos pelo patriarcado e romantiza a domesticidade. 

A proposta propriamente dita foi prometida para maio, no entanto, até à conclusão deste texto, não foi ainda apresentada. Por essa razão, analiso-a recorrendo às intervenções públicas do seu mais audível defensor, o jurista Paulo Otero. 

A proposta anuncia a criação de um “rendimento líquido mensal ou anual” para assegurar independência económica e proteção social na velhice às mulheres que não têm ocupação profissional, trabalham a meio-tempo ou deixaram o emprego para cuidar dos filhos. Os proponentes reconhecem que a proposta tem “implicações financeiras”, no entanto, sublinham, “o movimento não se move por euros, mas sim por valores”. É um estatuto pensado exclusivamente para as mulheres, porque “há funções que são próprias das mulheres, designadamente a maternidade. Há funções insubstituíveis da mãe, que por muito que o pai tente ajudar em casa nunca irá substituir a mãe. Há afetos que só a mãe pode dar, por mais presente que seja o pai”. Consideram existir dois tipos de mulheres domésticas e que ambos devem ser protegidos. O primeiro corresponde às mulheres que estão desempregadas por não encontrarem trabalho ou “por não terem possibilidades de pagar uma creche”. Estas são o “elo mais fraco da cadeia” e as mais propensas a “serem vítimas de violência doméstica”. As do segundo tipo são aquelas que são “simultaneamente trabalhadoras fora de casa” e, por essa razão, “não conseguem obter qualificações académicas”. 

Antes de me deter na proposta propriamente dita, creio ser necessário clarificar três confusões reveladas na sua sustentação, porque elas têm implicações no debate:

  1. A maternidade não é uma função, é um direito que pode ou não ser exercido.
  2. O afeto e suas expressões (emoção e sentimento) são capacidades humanas.
  3. A violência doméstica atravessa todas as classes sociais, não está necessariamente associada à pobreza.

Populismo de sacristia

A proposta anuncia pretender garantir independência económica e proteção social na velhice às mulheres do Estatuto através da atribuição de um subsídio. Quem tem direito ao subsídio? Qual o seu valor? A que índices estará indexado? Ao Salário Mínimo Nacional? Como se garante que a atribuição do subsídio contribui para a proteção na velhice (pensões)? Não se sabe. É uma proposta populista, exatamente porque não se detém nas suas condições de possibilidade, ficando-se pela proclamação.

No entanto, podemos depreender várias coisas da argumentação usada:

– A primeira é que o subsídio anunciado não se destina às mulheres desempregadas ou às que trabalham a meio-tempo, mas às que, nessa situação, são mães. Ou seja, o subsídio pretende premiar a escolha da maternidade como projeto de vida e, pelo caminho, faz a reafirmação de que cuidar dos filhos é responsabilidade das mulheres. Não é um subsídio que reconheça a parentalidade, mas a maternidade, estabelecendo, ademais, uma linha de demarcação entre as mulheres-mães e as mulheres-que-não-cumprem-a-sua-função, as outras, dando uso a uma velha prática patriarcal que é a de dividir as mulheres. 

– A segunda tem que ver com a naturalização do trabalho doméstico e do cuidado como uma competência feminina. As atividades do cuidado têm, historicamente, sido desenvolvidas por mulheres, que há séculos são socializadas para priorizarem o bem-estar dos outros elementos da família, particularmente das crianças e das pessoas deficientes e idosas. Em resultado da sua feminização, essas atividades foram invisibilizadas e subalternizadas ao longo do tempo e, por isso, desvalorizadas social e economicamente. Ao contrário do que desinforma Otero, não há nenhuma característica biológica que vincule as mulheres às atividades do cuidado e ao espaço doméstico. 

É a divisão sexual do trabalho que naturaliza o trabalho doméstico e do cuidado como trabalho feminino, beneficiando quer a economia capitalista, que se apropria do trabalho gratuito das mulheres, quer o patriarcado, que se reforça enquanto sistema de dominação-subordinação. Por essas razões, creio que parte da resposta que faz falta tem de começar exatamente por aí, por romper com os princípios que se alimentam da desigualdade e da sobre-exploração das mulheres. A responsabilidade pelos cuidados deve ser assumida como uma responsabilidade coletiva, social, e não exclusivamente das famílias e, dentro delas, das mulheres. A resposta deveria, pois, passar pela criação de um Serviço Nacional de Cuidados, capaz de libertar as mulheres da sobre-exploração e de, simultaneamente, garantir a todas as pessoas o direito a serem cuidadas, não fazendo depender o exercício desse direito da sua capacidade económica.

– A terceira tem que ver com a partilha das tarefas domésticas e do cuidado. Os estudos dizem que, se compararmos a divisão das responsabilidades familiares, constatamos que, do trabalho não pago, as mulheres assumem-no sozinhas em 30% dos casos e 43% assumem mais do que os companheiros (ou seja em 73% dos casos elas fazem mais do que eles) e que, ao ritmo a que na última geração evoluiu a contribuição dos homens para a execução das tarefas domésticas e do cuidado, se estima que faltem entre cinco e seis gerações para que se igualem as posições nas famílias em que ambos trabalham fora de casa. Perante as desigualdades existentes no uso do tempo para a realização das tarefas domésticas e do cuidado, em que as mulheres são profundamente prejudicadas, as respostas conservadora e liberal divergem. A conservadora, como já vimos, acha que as mulheres são biologicamente mais dotadas para as tarefas domésticas e do cuidado, por isso, a partilha não é assunto que ponderem, propondo, antes, o estatuto da “dona de casa” e o regresso das mulheres ao lar. Já a resposta liberal tem sido a de responsabilizar individualmente os homens e de empurrar para o espaço privado a resolução do problema. Esta estratégia é, em meu entender, uma rasteira que pretende instaurar uma outra divisão, agora entre nós, as mulheres, e eles, os homens. Uma guerra dos sexos, portanto, que tem como consequência (e objetivo) o isolamento e abandono das mulheres à sua sorte, de modo a garantir que a apropriação do seu trabalho se mantém. Responder a esta rasteira faz-se pela reafirmação do feminismo como movimento contra o patriarcado e não contra os homens.

Creio que a resposta que faz falta é outra e que o problema deve ser analisado de outro ponto de vista. Quando nos detemos nos dados do uso do tempo, percebemos que as mulheres, somando as horas de trabalho remunerado às horas de trabalho não remunerado, têm uma jornada média de 12 horas de trabalho. O problema não se resolve apenas com a partilha das tarefas, porque o resultado continua a ser a sobre-exploração, agora partilhada entre mulheres e homens, mas sobre-exploração. É, pois, necessário discutir o que é o trabalho, erodir a separação entre esfera produtiva e reprodutiva e refundar o conceito de trabalho, de modo que ele inclua o trabalho desenvolvido gratuitamente pelas mulheres. Isto implica, do meu ponto de vista, reduzir o horário de trabalho remunerado de todas as pessoas, para que o trabalho doméstico e do cuidado conte para as 8 horas globais de trabalho diário. O trabalho não remunerado deve ser partilhado entre todas as pessoas que habitam o mesmo espaço e devemos reclamar esta partilha, inclusivamente, como um direito, porque saber cozinhar, limpar e gerir uma casa são competências fundamentais de pessoas autónomas. Esta é uma das razões por que contesto a remuneração do trabalho doméstico (informal) e defendo, ao invés, a redução do horário de trabalho: as tarefas domésticas devem ser reconhecidas como trabalho, assumidas e partilhadas entre todas as pessoas e reconhecidas como fundamentais para garantir o bem-estar e a formação de sujeitos autónomos. 

– A quarta tem que ver com a ideia de independência económica. A independência económica das mulheres desempregadas, das que trabalham a meio-tempo ou das que não conseguem qualificações porque são mães de que fala Otero não se garante com um subsídio. Acho até insultuoso que a resposta a uma mulher que tem de abandonar o seu trabalho remunerado para ficar em casa porque não tem dinheiro para pagar a creche seja um subsídio, ou que se creia decente dizer a uma mulher que não consegue formar-se e qualificar-se para progredir na sua carreira porque tem de cuidar dos filhos “tome lá um subsídio”. É uma perspetiva assistencialista, caritativa, remediativa e, nessa medida, incapaz de inverter as relações sociais e económicas que produzem as desigualdades e garantir padrões mínimos de bem-estar para todas as pessoas.

Do que precisamos é de emprego com direitos, sem desigualdade salarial e com horários de trabalho que permitam partilhar as tarefas domésticas sem que isso represente uma sobrecarga, de modo a termos tempo livre para dedicarmos ao que quisermos, à formação e à qualificação profissionais ou a outra coisa qualquer, assim como precisamos de casas que possamos pagar com os nossos salários e de serviços públicos universais e gratuitos que respondam às necessidades das famílias. Do que precisamos é de melhorar o Estatuto de Cuidador Informal, enquanto, simultaneamente, nos batemos pela criação de um Serviço Nacional de Cuidados, para que cuidar possa efetivamente ser uma escolha e não uma fatalidade. E para isso é necessário que a prestação de cuidados informais para efeitos de pensão seja considerada, assim como é necessário concretizar o direito ao descanso e a férias e garantir que o apoio chega a todas as pessoas cuidadoras que dele precisam.

Não precisamos de um Estatuto que naturalize o trabalho doméstico e do cuidado como responsabilidades femininas. Não precisamos de um Estatuto que nos empobreça e nos isole social, económica e culturalmente no espaço doméstico. Não precisamos de um Estatuto que reserve para os homens o trabalho remunerado disponível e para nós um subsídio. Sabemos que esse é o sonho molhado dos conservadores, porque seria ele que lhes poderia permitir ousar sonhar em repor a velha ordem social do “em casa quem manda é ela, mas nela quem manda sou eu”.