Capitalismo e precariedade da vida

Portugal vai novamente a eleições, por responsabilidade do primeiro-ministro do breve governo da AD. Na campanha, muito se discutirá sobre o caso das incompatibilidades de Montenegro, mas seria bom que as escolhas políticas se afirmassem em torno dos principais problemas da maioria: a habitação, os salários que não chegam, as desigualdades, a falta de tempo para viver. São dimensões interrelacionadas da precariedade na vida. Portugal tem cerca de um milhão de trabalhadores com contrato a prazo no setor privado (metade dos trabalhadores administrativos e do alojamento e restauração são precários), quase 100 mil falsos recibos verdes, há um milhão de trabalhadores por turnos e metade deles tem dificuldade em adormecer ou declara ter insónias frequentes, o ganho médio das mulheres é 16% inferior ao dos homens e atinge os 26,5% quando se comparam mulheres e homens com ensino superior. Os salários são baixos e quase 40% dos trabalhadores do alojamento e da restauração recebem o salário mínimo[1].

Todos estes problemas precisam de alternativas de fundo. Também por isso, precisamos de forças anticapitalistas capazes de mobilizar os princípios da esquerda contra as múltiplas precariedades e de fazer análises sobre os impasses sistémicos do capitalismo. A precariedade na vida não é uma mera consequência colateral: resulta da lógica intrínseca do sistema em que vivemos e das suas mutações nos últimos anos.

Após a transição do fordismo para o modelo de acumulação flexível e quatro décadas de imposição de uma política conservadora e neoliberal, os países do Norte e Sul Global, dominados pela hegemonia dos Estados Unidos da América, encontram, sob suas ruínas, um aumento exponencial das desigualdades sociais, o baixo crescimento e estagnação de suas economias, o encolhimento da estrutura produtiva, o desemprego estrutural, o empobrecimento e o endividamento das famílias das classes trabalhadoras, para além da fragmentação dos laços de solidariedade comunitária, a atomização da experiência individual, a crescente descrença no princípio democrático e a consequente negação da sociedade como organismo político – uma hiper-realidade caracterizada por múltiplas crises, em que, como relembra Fredric Jameson, é mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo.  

            Esta era pós-fordista da governança neoliberal é marcada pela renovação das dinâmicas de acumulação primitiva do capital, por meio de uma série de programas e agendas de desregulamentação (dos mercados, das instituições, dos direitos sociais e do trabalho), de austeridade, privatização, pela expansão da lógica dos mercados e pela generalização da concorrência para instituições e esferas sociais antes desmercadorizadas. Trata-se de um intenso processo de flexibilização, fragmentação e hipermercadorização das instituições sociais, do trabalho e dos modos de vida dos subalternos. Um modelo de acumulação por espoliação que vive quanto mais mercadoriza e suga valor do mundo do trabalho e das esferas que constituem o mundo da vida das populações trabalhadoras, como relembra Fraser[2], o capitalismo neoliberal está devorando o trabalho produtivo e reprodutivo, a democracia e o planeta, canibalizando a si mesmo – gerando uma crise generalizada da ordem social. 

Ao mesmo tempo, é preciso realizar uma reflexão de como o neoliberalismo não surge apenas como resposta à crise de acumulação do capital, mas também como resposta à crise de governabilidade emergida após as duas grandes guerras, a revolução de outubro e o pacto social pós-guerra. Assim, a estratégia de dominação neoliberal se articula em uma série de discursos, práticas e dispositivos do poder que visam não apenas à reconfiguração da economia e das condições políticas, mas também à transformação das relações sociais. Ou seja, o neoliberalismo se estabelece como uma forma de racionalidade que configura as dinâmicas e formas da existência, redefinindo vocabulários, culturas políticas, princípios de justiça, práticas de governo e até imaginários democráticos. 

Estabelece estratégias, regras, leis, consensos e ideologias para construção de uma nova ordem normativa, mobilizada pela expansão das situações de mercado, pela generalização da concorrência entre os indivíduos e pela naturalização dos riscos, constituindo, assim, uma biopolítica neoliberal que impõe a precariedade como modo de vida, criando disposições balizadas pela concorrência, pelo desempenho e pela gestão dos riscos, internalizadas pelos indivíduos e constituindo, assim, uma subjetivação contábil e financeira que mobiliza as dinâmicas de socialização, reorienta políticas e comportamentos, produz novas relações sociais, subjetividades e maneiras de viver – congratulando uma sociedade do direito privado, de privatização total dos bens e serviços centrais para uma vida comunitária.

Nesse sentido, a precariedade faz parte tanto das dinâmicas de acumulação por espoliação da era da reestruturação produtiva do capitalismo financeirizado pós-fordista quanto do processo disciplinar da política neoliberal – não podendo ser resumida apenas à relação salarial, mas devendo ser analisada como um modo de dominação. A imposição da precariedade se estabelece, portanto, na desregulamentação dos direitos sociais e do trabalho, dos mercados e instituições, pelas políticas de austeridade, pelo desemprego estrutural e em todo aparato da acumulação flexível. Conjuntamente, a precariedade se cristaliza por meio de uma série de estratégias de normatividade neoliberal que acentuam o processo de mercadorização das esferas sociais que constituem o mundo da vida, estabelecendo a dominação do tempo abstrato sobre as principais dinâmicas de socialização e esferas sociais, acelerando e fragmentando a experiência do tempo dos indivíduos, desumanizando as experiências de vida das populações trabalhadoras. 

Criam-se, assim, vivências pautadas pela biopolítica da precariedade – isto é, pela imposição do tempo abstrato, da lógica contábil e financeira, sobre o mundo do trabalho e da vida, pela multiplicação das situações de mercado, pela generalização da concorrência, da insegurança e da incerteza, pela individualização dos riscos, pela subordinação dos trabalhadores face às hierarquias, pela conciliação entre a subjetividade e os objetivos da empresa, pelos estímulos incessantes à competição e desempenho. Falamos, assim, de uma formação social precária, na qual direitos básicos se tornam improváveis e impensáveis, e a vida é pautada pela aceleração e fragmentação da experiência do tempo.

É a esta formação social precária que pertencemos, mas é contra ela que precisamos de construir uma alternativa política que nos permita sermos soberanos do nosso trabalho e do nosso tempo. Numa palavra, da nossa vida. 


[1] Ver Cantante, F. (Coord.), Estêvão, P., Tomassoni, F., Cunha, D. S., Ferreira, B., Costa, S., Caleiras, J., Teixeira, A., Nunes, S., Almeida, T., Teixeira, T. & Lamelas, F. (2024). Trabalho, emprego e proteção social 2024. CoLABOR. https://doi.org/10.5281/zenodo.14259658

[2] Fraser, N. (2024). Capitalismo canibal. Como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito. Autonomia Literária.