
Cinema: Chelas nha kau
Começamos a nova secção de Cultura com um artigo de Pedro Ivo Carvalho sobre Chelas nha kau, estreado no DocLisboa 2020.
Ao contrário dos recentes filmes sobre periferias, como o grande O fim do mundo de Basil da Cunha ou Les misérables de Ladj Ly, ou ainda os mais distantes Cidade de Deus de Fernando Meirelles e Kátia Lund e La haine de Mathieu Kassovitz, o filme assinado pelos Bataclan 1950 e pelos Bagabaga Studios, Chelas nha kau (Chelas meu lugar), caminha em outra direção, em outras vielas, as do documentário. Também ao contrário desses, evita o assunto por excelência quando o sujeito é a periferia, seja ela qual for: a violência. No entretanto desvia dos lugares-comuns e dos clichês sociais sobre os quais o cinema – pelo menos na sua maioria, documentário e ficção – romantizou e injustamente dissertou sobre periferias, guetos e comunidades: armas, poses, objetificação, apropriação, etc. Preconceito magistralmente sintetizado numa transcrição de uma chamada telefónica, ao pedir uma pizza. Simplesmente não a entregam por ser “um lugar… assim… perigoso”. Quer dizer, pode-se combinar a entrega na esquadra (?!) e pegar lá. A piada pronta.
Sobretudo um universo masculino, de ginga e jogo de cintura, das rimas e do hip hop, mas que tem em Rita um ponto de articulação, de repouso e segurança. Quase uma figura maternal para os garotos. Às tantas, ela é indagada sobre como os colegas a consideram como um deles. Não há resposta outra se não um sorriso acanhado e lembranças passando pelos olhos que são impossíveis de verbalizar. Mas a centralidade de Rita não ameniza o fato de grupos que conseguem voz e destaque são (ainda) maioritariamente dinamizados pela virilidade e, talvez por isso, o interesse do filme pela personagem.
O filme é um apanhado de fragmentos quotidianos gravados pelos próprios Bataclan, cenas que embora sozinhas se completam (e sozinhas talvez não passariam de momentâneas stories de Instagram ou Tik-Toks), ali, montadas umas com as outras, potencializam-se, empoderam e ressignificam uma à outra. São pequenas crónicas e deslumbres com uma câmera (ou com o que ela regista? Ou ambos?), a possibilidade de se registarem para além da efemeridade das redes, fazerem parte de uma história, ou melhor, da história do bairro, se afirmarem no tempo como uma geração que faz a diferença.
Depois da uma hora de fragmentos de certo modo aleatórios do dia-a-dia daqueles jovens, a única coisa que fica é a alegria. E é na aleatoriedade que esses fragmentos também se ligam, se montam. E é na aleatoriedade de alguém que ali vive e regista aquelas imagens que fazem essas tão sinceras, tão transparentes para nós que não vivenciamos das experiências daquelas personagens que de tão, mais uma vez, alegres, são reais e próximas. E ao mesmo tempo, distantes platónicos. E como o são alegres, como explodem em risos, gargalhadas, música e felicidade o orgulho e o senso de pertença àquele endereço.