É possível argumentar que a história do desenvolvimento económico de Portugal entre o início do século XX e a atualidade é a de uma elite económica que tem representado um atraso nos investimentos estruturais necessários para um modelo social e económico de justiça, mantendo o seu domínio através da utilização do Estado como organizador e produtor da burguesia nacional. Se o Estado Novo mobilizou esta burguesia num movimento reacionário de conservação das colónias como forma de manutenção de um foco de extração económica face à periferialização da economia nacional, o 25 de Abril veio significar, a curto prazo, a detenção de vários dos empresários e líderes das famílias “nobres” portuguesas (após o golpe de 11 de Março de 1975) e a nacionalização de múltiplas estruturas bancárias. E no entanto, o padrão de desigualdade de distribuição de capital, propriedade e meios de produção rapidamente voltou aos eixos iniciais: a reorganização da estrutura empresarial privada foi revigorada após o 25 de novembro de 1975. Diversas privatizações (o período de governação de Cavaco, Guterres, Durão-Portas e Sócrates) seguiram-se e o período revolucionário parecia cada vez mais longínquo na estrutura financeira e na retórica em torno das contas e da administração pública.
O Partido Socialista, que declarara em 1973 na sua declaração de princípios a afirmação da defesa do socialismo em liberdade, do marxismo e a definição de objetivo último uma sociedade sem classes, foi um dos agentes deste movimento pendular para a direitização do panorama político. Tendo estado imiscuído na governação como um dos partidos mais predominantes fez parte dos conhecidos Blocos Centrais.“PS completa 50 anos de existência dos quais metade esteve no Governo”, lia-se no dia 19 de Abril de 2023 na plataforma online da TSF.
O debate sobre o quadro ideológico no qual o PS de hoje procura atuar é motivo de contínua discórdia, evidente na comunicação social e nos próprios militantes e dirigentes (veja-se o debate atual em torno dos candidatos ao cargo de secretário-geral). No entanto, o afastamento do marxismo em torno da concentração de capital não é recente, mas sim fruto de diversas opções nas últimas décadas. Em 1986, a influência de Mário Soares junto a François Mitterrand foi crucial para a “associação estratégica” na privatização da Tranquilidade e do BES. Só entre 2006 e 2010, por força do PS, foi eliminado o capital do Estado na fileira da celulose, assumindo-se a privatização da Portucel, a privatização de empresas estratégicas do setor da energia como a EDP, a Galpenergia e a REN. Foi até Santana Lopes que declarou em 2010 que “o PS é o partido das privatizações”. Veja-se que o próprio filho da ala esquerda do Partido Socialista, Pedro Nuno Santos, como ministro das infraestruturas, tem sido excecional na aplicação de um programa que qualquer partido de direita teria desejado implementar:
– escolheu não reverter a privatização dos CTT, mas ao invés disso negociar com o grupo Champalimaud;
-não reverteu a Lei do Trabalho Portuário, aliando-se ao patronato do Porto de Lisboa
– aceitou colocar a TAP sobre um processo de reestruturação, destinada a ser vendida a uma das três operadoras europeias de referência- Lufthansa, Air France/KLM, Iberia/British
Se o Estado se tornou o mecanismo para a acumulação desigual de capital, através das transferências no sistema financeiro, no acesso a benefícios fiscais e na acumulação da fraude e da evasão fiscal, o PS tem constituído um ativo contribuidor para o crescente fosso entre as classes na sociedade portuguesa. Em 1991, Cavaco Silva disse que Portugal estaria aberto ao capital estrangeiro, desde que não envolvesse empresas “estratégicas do Estado”. Hoje, tal premissa já não é aplicável, mas perguntamos: o país ficou melhor com o rol de privatizações?
Vejamos alguns exemplos:
-a reprivatização do setor financeiro teve como consequência a primazia da atividade especulativa, em detrimento da atividade produtiva. Veja-se o desaproveitamento da Caixa Geral de Depósitos
-no setor industrial verificou-se o acentuado definhamento de várias empresas privatizadas
– o setor energético, cuja privatização começou em 1997 e 2011 conheceu aumentos sucessivos de tarifas simultaneamente à divisão milionária de dividendos entre acionistas, como se viu durante o aumento da inflação aquando o início da guerra na Ucrânia
O Partido Socialista da maioria absoluta não aproveitou os mecanismos políticos à sua disposição para contestar a presença excessiva de grupos estrangeiros no mercado imobiliário português, à custa da vida de milhares de pessoas, muitas das quais constituem o seu eleitorado. Porquê, inquirimos?
A insistência de clarificação política não é apenas relevante para o debate da teoria política: é para quem vive neste país. A distância crescente entre os interesses de quem vive do seu trabalho e quem defende os interesses dos grandes grupos económicos não pode ser confundida com o socialismo. É brincar com quem trabalha.