O corpo é e sempre foi um elemento importante da teoria marxista. O materialismo que Marx defende em Teses sobre Feuerbach como «atividade sensível humana, práxis» é precisamente a tentativa de pensar a política corporeamente. Podemos também afirmar em certa medida que a teoria da exploração é a teoria da exploração dos corpos, na medida em que o trabalho vendido é o produto de corpos biológicos e não de uma realidade imaterial.
Os corpos têm manifestamente uma vontade biológica – trabalhamos para poder cumprir uma série de necessidades básicas – mas também uma inscrição social muito diversificada. Bourdieu, ao debruçar-se sobre a perceção social do corpo, percebe que este não só é uma linguagem com a qual falamos, mas também uma linguagem social através da qual somos falados. Ou seja, as opressões e os contextos que nos formam deixam marcas no nosso corpo, na nossa forma de estar e no nosso comportamento.
Traçar uma relação entre o trabalho e o corpo é uma tarefa que apresenta uma multitude de complexidades, uma vez que este está imerso no mundo social e material. Desde a divisão sexual do trabalho à hierarquização do trabalho mental sobre o trabalho físico, à invasão do espaço do sono pelo trabalho ou à categorização moral de diferentes tipos de exploração do corpo. Em todas estas dimensões, a relação entre o corpo e o trabalho é, no entanto, mediada pela dominação.
Dominação
Numa conceção denominadamente foucaultiana, o corpo é um lugar de projeção de poder e o trabalho é uma das formas através das quais o poder se projeta. É o que acontece também na teoria da exploração: um corpo é subjugado por outro a troco de uma remuneração. O trabalho é uma experiência sensível encarnada, que deixa as suas marcas no corpo. Por isso Jacquot e Volery consideram que a automatização do gesto imposta pelas inovações do taylorismo e do fordismo é um processo de desumanização.
Desumanização ou alienação: é possível que aqui os dois termos sejam intermutáveis. Marx descreve a alienação nas suas múltiplas dimensões, entre as quais a do processo de produção, mas liga-a fundamentalmente ao facto de o trabalhador não se realizar no seu trabalho. Podemos ir mais longe e falar de uma alienação pela dominação, que não está circunscrita ao capitalismo. Antes da fábrica, já a plantação servia como instrumento de desumanização e nesse caso temos muito mais terreno para falar da violência e do sofrimento impostos aos corpos que trabalham do que da realização do trabalhador no seu trabalho.
Falar de dominação é, infelizmente, demasiado abstrato. Todo o modo de produção que existiu até hoje tem as suas formas de dominação idiossincráticas. Mas da escravatura, ao trabalho feudal, ao trabalho assalariado da revolução industrial até ao trabalho nas sociedades capitalistas avançadas, os processos de dominação têm vindo a mudar, nomeadamente através da disciplina que aplicam.
Disciplina
A transição para uma economia de serviços transformou não só as formas de mobilizações dos corpos, mas também os corpos mobilizados, como apontam Jacquot e Volery. Isto quer dizer que para além das novas formas de produção – o chão da fábrica dá lugar ao escritório, por exemplo – os sujeitos também mudam. Não só falamos da abertura do mercado de trabalho formal às mulheres, e do fim da segmentação do mercado de trabalho entre ‘trabalhadores’ e ‘trabalhadores racializados’ em alguns países, mas também de uma mudança de capacidades. O trabalho de serviços já não põe no centro a força e a habilidade física. Antes, é preciso um trabalhador que não só domine as habilidades técnicas que são necessárias dentro do seu espaço de trabalho, mas que também esteja disposto a prestar serviço para lá das fronteiras físicas do escritório.
Nas sociedades capitalistas avançadas, um dos principais mecanismos de disciplina é, como aponta Bourdieu, a precariedade. A casualização do emprego é, na sua perspetiva, parte de um modo de dominação que força os trabalhadores à submissão. Trocamos uma disciplina física, usada durante a escravatura, por uma disciplina de coerção. A formatação da ideia de que se não cumprirmos as nossas tarefas da forma pretendida, somos substituíveis.
Curiosamente, Jacquot e Volery notam uma forma de disciplina usada na economia de serviços que é mais sub-reptícia. A formatação e fabricação de corpos que trabalham através de disciplinas organizacionais para se adaptarem às necessidades do trabalho. Um trabalho que hoje cabe aos recursos humanos através de formações, das metas de trabalho, dos indicadores de produtividade, enfim, toda uma forma de policiamento dos corpos que trabalham.
Resistência
Falta ainda colocar a questão: podem os corpos resistir? É uma questão que encontra a sua resposta na tensão estrutura-agência. Não podemos reduzir os corpos a peças num tabuleiro estruturalista. Ou seja, não podemos reduzir o trabalho ao ato de mercantilização do corpo. O mundo social não é só composto por representações, regras, factos sociais ou signos, mas também por corpos, que, para além de serem vistos como instrumentos de ação, devem ser vistos como processos dinâmicos, susceptíveis de resistir à apropriação social e cultural dentro da dominação e da disciplina. O corpo é também, portanto, um vetor da ação de protesto.
Os corpos resistem individualmente, no seu dia-a-dia, ao confrontar as estratégias de disciplina. Criar o corpo insubmisso foi, por exemplo, uma reivindicação explícita do movimento punk, mas também certamente de muitos antes desse. É uma prática que hoje é também reivindicada pelo movimento queer, pelo feminismo, pelo pensamento descolonial, que procuram confrontar uma disciplina rígida do corpo com a imaginação e a possibilidade.
Mas resistir é também uma ação estrutural quando os corpos se juntam para reivindicar os seus direitos. Pensar a resistência à relação de exploração do trabalho é também pensar formas alternativas de organização do trabalho que envolvam o corpo enquanto corpo. Enquanto encarnação sensível, sujeita aos seus próprios desejos e vulnerável às suas próprias opressões físicas e simbólicas. Se trabalhar é usar o corpo enquanto instrumento de produção, queremos uma produção humanizante. E resistiremos até a ter.
Karl Marx. Teses sobre Feuerbach
Karl Marx. Manuscritos Económico-Filosóficos
Lionel Jacquot e Ingrid Volery. Le travail dans la peau. Les figures du corps dans la sociologie du travail contemporaine.