O que têm em comum a queda de governo de Montenegro, as tarifas de Donald Trump e o anúncio do rearmamento da Europa por parte de von der Leyen? O início de 2025 tem sido marcado por convulsões várias e mudanças surpreendentes a nível internacional. O espetro da guerra voltou a pairar sobre a Europa e o clima político é de instabilidade, medo e incerteza sobre o futuro próximo.
Sabemos que o modo de produção capitalista é marcado por instabilidade endémica, mas como podemos explicar esta conjuntura particularmente convulsa, sobretudo visto que não estamos (ainda) em período de crise? A resposta jaz na constatação de uma crise de acumulação profunda que começa final dos anos 60, mas que se vem agravando progressivamente, atingindo neste momento histórico uma expressão particular e contradições cada vez mais difíceis de navegar. Assim se explica que o sistema se torne cada vez mais agressivo e se vire para o autoritarismo e para a guerra como soluções finais para a manutenção do regime de acumulação.
Marx famosamente decretou que a queda tendencial da taxa de lucro era uma lei inexorável da produção capitalista. Pondo de parte as controvérsias em torno desta lei, todos os dados apontam para que tenha existido uma forte descida da taxa de lucro desde o final dos anos 60. A tendência é inegável, mesmo que a variação não tenha sido exatamente linear nem isenta de oscilações. O que tentarei mostrar é que a instabilidade vivida neste momento é o resultado da agudização deste processo.
O princípio do fim?
O período do pós-guerra, frequentemente descrito como os ’30 anos dourados’, foi de forte expansão do capitalismo, marcada simultaneamente por aumentos extraordinários da taxa de lucro e por conquistas importantes para a classe trabalhadora. Isto só foi possível pela rápida inovação tecnológica, sustentada pelo grande investimento dos Estados no esforço de guerra.
Quando este modelo já começava a mostrar sinais de estar esgotado, o fim do padrão-ouro em 1973 e o choque petrolífero atiram o centro capitalista para uma crise prolongada de estagflação, cuja síntese é a viragem para o neoliberalismo como paradigma económico. A liberalização financeira e livre de circulação de capitais promovidas pelos acordos internacionais de comércio na década de 80 proporcionaram uma breve recuperação das taxas de lucro depois da grande queda registada na década anterior.
O neoliberalismo e a globalização podem ser compreendidos, assim, como uma reação organizada do capital para recuperar as taxas de lucro, combatendo a redução da rendibilidade do capital com a sua expansão para outras geografias onde os baixos custos do trabalho permitiam um aumento da exploração. Como veremos, todas as descidas da taxa de lucro no período analisado são seguidas de respostas de natureza distinta com vista a restaurá-la que, embora consigam fazê-lo no curto prazo, são incapazes de travar a sua descida estrutural e tendencial no longo prazo.
No entanto, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Confrontados com a desindustrialização provocada pela deslocalização das atividades manufatureiras para o Sul Global, principalmente no leste asiático, os países ocidentais procuram restaurar a competitividade desregulando o trabalho e o setor financeiro, e desonerando fiscalmente o capital. O resultado é, não só, uma verdadeira corrida para o fundo em termos dos salários e da receita fiscal, deprimindo a procura agregada e o investimento público, outrora tão importante para a rendibilidade do capital, mas também a financeirização das economias.
O vício nas rendas financeiras de produtos crescentemente complexos e opacos reforçou as tendências de desindustrialização/terciarização e inaugurou um período de estagnação do crescimento económico e da produtividade, reforçando a tendência de redução da taxa de lucro. Esta espécie de movimento autodestrutivo do capital demonstra em toda a força as contradições da economia capitalista e a sua incapacidade de condução económica sustentável a longo prazo. Em todo o caso, é este paradigma que permite compreender os desenvolvimentos neste século.
Ecos da crise financeira
O século XXI abre na ressaca da crise financeira asiática de 1997 e da bolha dot.com. A orientação das economias para o setor financeiro já acusava limites e a crise financeira de 2007-8 veio demonstrá-los em absoluto. Aqui se viu que não era sustentável estruturar economias com base na acumulação de capital fictício. A década que precede a crise financeira é marcada por crescimento lento e um forte endividamento das economias, alavancado por um acesso desinibido ao crédito, por sua vez facilitado pela desregulação financeira e pela livre circulação de capitais.
Seguiu-se uma grave crise de acumulação, pois tinha sido atingido o segmento proeminente da classe dominante: o setor financeiro. Após ser ensaiada uma breve e tímida tentativa de keynesianismo, a resolução da crise foi mais uma vez arbitrada a favor do capital. A resposta à descida da taxa de lucro – a austeridade – promoveu o aumento da reserva industrial do trabalho via desemprego em massa e desregulou ainda mais o mercado de trabalho, criando condições decisivas para a intensificação da exploração. Ao mesmo tempo, o resgate direto dos grandes grupos financeiros por parte do Estado através da emissão de dívida, a concentração empresarial derivada da falência dos grupos menos resilientes devido à depressão da procura, e a privatização de grandes empresas públicas com rendas garantidas permitiram a restauração (temporária) da rendibilidade do capital.
No entanto, nada de estrutural foi mudado nas economias, além da descida substancial dos custos do trabalho. A estratégia de recuperação na década seguinte assentou, por um lado, na breve recuperação de competitividade proporcionada por esta circunstância, mas, sobretudo, numa política monetária expansionista permanente dos bancos centrais. Durante quase uma década, os bancos centrais seguraram na prática as economias ocidentais com taxas de juro de referência baixíssimas, tendo chegado a ser negativas, e contínuas injeções de liquidez avultadas através de programas de quantitative easing.
Isto permitiu uma certa recuperação, mas toda ela artificial e frágil, pois baseou-se uma vez mais na valorização de ativos ao invés de uma expansão das forças produtivas. Um estudo recente da consultora McKinsey[1] compara a evolução do valor dos ativos em relação ao PIB nas 10 maiores economias do mundo desde 1970, concluindo que este rácio, tendo-se mantido de 4:1 entre 1970 e 2000, aumentou para mais de 6:1 entre 2000 e 2020 – uma subida de 50% em 20 anos.
Como sempre, o reverso das rendas financeiras é a descida das taxas de lucro. A crise de sobreprodução intensifica-se e leva à continuação da financeirização, apesar da crise. A procura deprimida pela contenção salarial diminui ainda mais as possibilidades de alocação de capital produtivo aos capitalistas, virando-se, assim, de novo para a especulação financeira, que permite rendimentos não através do investimento produtivo, mas, sim, da valorização e troca de ativos financeiros. Isto aconteceu não só nos mercados de capitais, mas também no imobiliário, que ganha muita expressão neste período pós-crise – o mesmo estudo estima que o imobiliário representa quase 70% do valor líquido dos ativos a nível mundial.
Numa série de ‘movimentos polanyianos’[2], o mercado vai-se progressivamente apropriando e mercantilizando áreas da nossa vida como estratégia para evitar a descida da taxa de lucro. É o caso do dito mercado da habitação, mas também da saúde, energia e até da nossa própria experiência individual sob a forma de dados. A ascensão das grandes tecnológicas norte-americanas como novo segmento dominante do capital explica-se, contudo, não só pela descoberta desta nova matéria-prima gratuita, mas também pela especulação financeira, tendo-se materializado através de uma extraordinária capitalização bolsista no período pós-crise. Na ausência de aplicações produtivas, foi para aqui que grande parte do dinheiro emitido pelos bancos centrais se dirigiu. Em todo o caso, é evidente que no contexto que quebra prolongada de taxa de lucro, os setores mais dinâmicos do capital são os setores rentistas, nomeadamente o imobiliário e as grandes tecnológicas, apoiados, claro está, na finança. A resistência do capital contra esta tendência efetua-se pela canibalização de cada vez mais aspetos da nossa vida.
Por fim, a barbárie
A pandemia operou uma nova descida da taxa de lucro, que foi rapidamente combatida através uma renovada injeção de liquidez dos bancos centrais e de uma estratégia agressiva de sellers’ inflation[3] por parte do capital, aproveitando o clima de aceitação da inflação para aumentar fortemente as margens. Isto permitiu lucros extraordinários de alguns setores com grande poder de mercado como a energia, o retalho e a banca. Ao contrário do período pós-crise, deve notar-se, os bancos centrais decidiram aumentar fortemente as taxas de juro de referência, mesmo que a procura não fosse a causa da inflação, num outro movimento para segurar o valor dos ativos financeiros à custa das atividades produtivas e da classe trabalhadora.
No entanto, passado o período mais crítico da inflação, estes lucros voltaram ao normal. A forte deterioração do poder de compra das massas trabalhadoras, que, de forma geral, tiveram aumentos salariais modestos por comparação com a inflação do período, só veio agravar a tendência de queda da taxa de lucro.
À medida que o tempo avança e que as estratégias do capital para combater esta tendência se revelam efémeras e ineficazes, as contradições do sistema capitalista aprofundam-se e a sua agressividade intensifica-se. Hoje, encontramo-nos numa conjuntura particularmente perigosa.
Desde há um ano para cá, tem-se ganhado consciência da aguda crise do setor automóvel e europeu e americano, materializada em grandes quedas dos resultados e das cotações em bolsa das principais empresas, fechos de fábricas e despedimentos. O pânico dos líderes ocidentais é justificado – trata-se, talvez, do último baluarte da indústria euro-americana – e as tarifas introduzidas por Trump e pela União Europeia, assim como a ressuscitação da política industrial, são uma tentativa desesperada de proteger o que resta do capital produtivo nestes territórios. A guerra comercial inaugurada por Trump ameaça o já débil crescimento económico no centro capitalista e introduz um novo elemento de instabilidade sistémica. Ela soma-se a um modelo de acumulação já altamente instável, que saiu da crise financeira praticamente inalterado. A enorme sobrevalorização dos ativos financeiros faz pensar que uma nova crise está à espreita.
Na sequência do surto inflacionário e da perda de compra, vários governos têm caído e a instabilidade política é cada vez mais a norma, com parlamentos fragmentados, legislaturas curtas e dificuldade em formar coligações maioritárias de governo. Isto é um espelho das contradições do sistema, cujos representantes políticos tradicionais, que alternam no poder sem alternar de políticas, merecem cada vez menos confiança das massas depauperadas. Esta insatisfação tem sido efetivamente cavalgada pela extrema-direita, que cresce por toda a parte, afigurando-se até como força de governo em vários locais.
A pandemia poderá ter deixado marcas fortes numa tessitura societal já debilitada, nomeadamente na ainda maior digitalização do social, assim como na forte desconfiança social e nas autoridades (olhe-se para a proliferação de teorias de conspiração neste período). Como documenta Daniel Borges no seu contributo, o desenlace social fortalece o terreno para a extrema-direita. O paralelismo com os anos 30 do século passado é evidente: num momento de enorme instabilidade económica e crise social e política, venceu o fascismo. Evocando Clara Mattei, será que uma renovada vaga de austeridade nos trará de novo o fascismo?
Diminuída a legitimidade política da direita tradicional, o capital vira-se para a ‘nova’ extrema-direita, quer com adesão ideológica, quer com generoso financiamento, como forma de relegitimar o sistema. A extrema-direita permite não só canalizar a frustração para longe da luta social e política, como também manter e aprofundar o regime de acumulação.
Esta é uma opção absolutamente natural para o capital: depois da globalização, há menos mercados para expandir ou para explorar mão de obra barata (por isso, se querem desproteger imigrantes); depois da austeridade, há pouca margem para desregular mais a legislação laboral ou para baixar mais os custos do trabalho; depois da crise inflacionária, é difícil aumentar ainda mais as margens ou espremer ainda mais o poder de compra, pelo menos sem arriscar um declínio insustentável do consumo privado. Sem surpresas, o capital vira-se para o autoritarismo quando não é possível impor a exploração de forma não-coerciva, qual braço armado da hegemonia.
A guerra cumpre uma função semelhante. Por um lado, ela serve como pretexto para canalizar recursos públicos escassos para o complexo militar-industrial, que se espera poder proporcionar uma recuperação da rendibilidade do capital no centro capitalista, procurando repetir os êxitos do keynesianismo militar no pós-II guerra. Já nos vem sendo dito que o regresso da austeridade é inevitável para financiar estes esforços. Por outro lado, a pregação da inevitabilidade da guerra cria condições de aceitação de medidas políticas que em ‘momentos normais’ seriam inaceitáveis. No estado de exceção, a discriminação e a violência são admissíveis, e os direitos, a democracia e a lei são dispensáveis. É a necropolítica ao serviço da exploração.
Vivemos, por todas estas razões, num momento histórico particularmente perigoso e, por isso, especialmente instável e convulso. À medida que se estreita o espaço para estratégias de recuperação da taxa de lucro, aumenta o espaço para a barbárie. A instabilidade, a incerteza e a violência tornam-se elementos do quotidiano. A democracia política, as liberdades, os direitos sociais e laborais serão crescentemente vistos como obstáculos a remover. Só isto permite ao capital resistir, mesmo que temporariamente, ao seu próprio declínio.
[1] McKinsey Global Institute. (2021). The rise and rise of the global balance sheet. Retirado de: https://www.mckinsey.com/industries/financial-services/our-insights/the-rise-and-rise-of-the-global-balance-sheet-how-productively-are-we-using-our-wealth
[2] Referência ao argumento do historiador económico Karl Polanyi n’A Grande Transformação, que documenta como a terra, o trabalho e o dinheiro, bens públicos outrora sobredeterminados por relações sociais, se tornam mercadorias para comprar e vender.
[3] Por exemplo, ver o artigo de Weber (2023), Taking aim at Sellers’ Inflation: https://www.project-syndicate.org/commentary/sellers-inflation-diagnosis-accepted-but-old-interest-rate-policies-remain-by-isabella-m-weber-2023-07