
Cuba: liberdade para os presos políticos
Artigo por Luís Leiria
O governo cubano, os meios de comunicação, dirigentes do Estado e do Partido Comunista repetem nas últimas semanas que o país vive uma “paz e tranquilidade cidadãs”. Mas esta enganosa calmaria não consegue ocultar a realidade escancarada pelas manifestações populares e espontâneas do dia 11 de julho deste ano. Esta mobilização popular, a mais importante desde a Revolução de 1959, comprovou que “o modelo social [de Cuba] não só ruiu como também, na sua agonia, mostra um governo que mente com desfaçatez, aferra-se ao que resta das suas bases cativas e reprime com impunidade qualquer dissidência”, escreve a historiadora, professora e escritora Ivette García González, num artigo recente no La Joven Cuba. Para a autora, “o estado de terror imposto pelo Partido/Governo/Estado” criou em Cuba uma “Paz dos Cemitérios”[1]. Mas “encontramo-nos num ponto de não retorno”, adverte. “A paz dos cemitérios nunca foi aceitável por ninguém.”
O povo pobre saiu à rua
No dia 11 de julho foi o povo pobre e negro de Cuba que saiu à rua e deu base nacional aos protestos, ocorridos em todas as províncias do país. Outros grupos aderiram às manifestações de rua, como os estudantes, mas sem alterar a sua base social proletária. A revolta era contra a subida inconcebível dos preços dos alimentos provocada pela política do governo, e por isso gritava-se “temos fome!” e pedia-se também medicamentos e vacinas. O povo das ruas pedia também liberdade contra a ditadura.
Mas não há registos de que em algum lugar os manifestantes tenham adotado as palavras de ordem da direita cubana, como a “intervenção humanitária” na ilha, agitada nalgumas manifestações de Miami.[2] Mesmo os gritos de “Pátria e Vida”, inspirados numa canção de rappers cubanos (da ilha e da emigração) que ganhou enorme popularidade, não refletem propriamente posições de direita.[3]
É inegável a influência que a direita no exílio e, através dela, o governo norte-americano terão exercido através da Internet, mas achar que a direita cubana teria a capacidade de organizar um protesto nacional das dimensões do de 11-J é atribuir-lhe uma força e implantação que ela nem em sonhos possui.
Não foi esse, porém, o entendimento do governo cubano, que imediatamente denunciou os manifestantes como “mercenários”, “vândalos” e “revolucionários confundidos”, contra os quais o presidente Díaz-Canel deu “a ordem de combate”: “À rua, revolucionários!”. A ordem foi seguida pela polícia, por destacamentos especiais do Exército e por inúmeros membros da Segurança do Estado e militantes do PCC que se armaram de tacos de beisebol para atacar os manifestantes, a coberto de um apagão da Internet de 48 horas.
O balanço da violência repressiva é eloquente: “a Justicia 11J documentou 1.271 detenções relacionadas com a explosão social do 11-J. Destas pessoas, pelo menos 659 continuam em detenção. Verificou-se que 42 foram condenadas a privação da liberdade em julgamentos sumários e 8 em julgamentos ordinários. Já se conhece a acusação do Ministério Público a 269 pessoas que esperam entre 1 e 30 anos de prisão. A figura de sedição foi utilizada para impor sanções a pelo menos 122 pessoas”, resume a escritora e jornalista cubana Lisbeth Moya González num artigo que tem tido grande repercussão internacional: “Apelo à solidariedade pela causa dos presos políticos de 11 de julho em Cuba. O caso do jovem artista Abel Lescay”
O embargo tem as costas largas
O governo cubano atribui as dificuldades económicas que o país atravessa ao embargo decretado pelos Estados Unidos há 61 anos e agravado recentemente pelo governo Trump. A administração Biden tem-no aplicado sem alterações, contrariando as expectativas de que pelo menos as medidas de agravamento decretadas por Trump seriam revogadas.
Mas o embargo não pode ser responsabilizado por todos os desastres.
“Sendo certo que as sanções do governo dos Estados Unidos têm prejudicado a economia, ao analisar Cuba não podemos ignorar o fenómeno burocracia e a falta de participação popular na política”, defende Lisbeth Moya González no já citado artigo.
Vejamos um exemplo gritante do fenómeno burocracia: em plena pandemia da Covid-19, o Estado cubano, através do conglomerado estatal GAESA (Grupo de Administração Empresarial, SA), manteve o investimento crescente na construção de hotéis, mesmo com o colapso do turismo, enquanto o investimento na saúde definhava. Entre 2014 e 2020, a participação do investimento imobiliário da GAESA no total do investimento do país subiu de 21,8% para 45,6%. No mesmo período, o investimento no setor da Saúde caiu de 2,2% para 0,9%. E no primeiro trimestre de 2021, já no segundo ano da pandemia, a tendência manteve-se: a participação do investimento em hotéis chegou a 50,3% enquanto na Saúde definhava ainda mais: 0,3%!
Um pormenor nada irrelevante: o grupo GAESA é propriedade das FAR (Forças Armadas Revolucionárias), o Exército de Cuba, e o seu presidente é o general de brigada Luis Alberto Rodríguez López-Calleja, membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba e chefe do V Departamento das FAR.
Outro fracasso que trouxe consequências devastadoras para a população foi o do plano batizado de Tarefa Ordenamento, que pretendia acabar com as duas moedas que circulam na ilha, afirmava o objetivo de fechar as lojas exclusivas a quem disponha de divisas e prometia abastecer todas as lojas que só trabalham em pesos cubanos. Nada disso foi cumprido e a inflação decorrente destes fracassos é tão grande que esmaga o poder de compra dos parcos salários dos cubanos. Família que não tenha algum parente a viver no exílio com a possibilidade de enviar-lhe dólares ou euros regularmente, está condenada à miséria.
Nasce a Arquipélago
O rescaldo do 11-J deu origem à organização Arquipélago, de oposição ao governo e que advogava uma atuação de oposição legal e pacífica, enquadrada na nova Constituição da República, que estabelece um “Estado socialista de direito e justiça social, democrático, independente e soberano”.
Funcionava pela Internet, com uma estrutura horizontal e totalmente transparente, onde os moderadores dos grupos de discussão tentavam promover consensos para chegar às decisões. Foi a Arquipélago que convocou a manifestação do 15 de novembro, pedindo a sua autorização através de requerimentos assinados por grupos de cidadãos e entregues às autoridades locais. O seu objetivo era conquistar “uma autêntica transformação para a democracia, o resgate das liberdades civis e dos direitos humanos”, bem como a libertação de todos os presos políticos.
Todos os pedidos de autorização da manifestação foram negados e os apelos a instâncias superiores receberam a mesma resposta.
A Arquipélago manteve a convocatória, numa atitude de desafio. Mas o governo e a DSE (Direção de Segurança do Estado) souberam aproveitar o calcanhar de Aquiles da organização opositora a seu favor. Infiltrados na estrutura Internet da sua organização, ficaram ao corrente dos planos e puderam assim preparar a repressão com todos os requintes. O seu objetivo foi sufocar a manifestação antes que ela se realizasse, e desmoralizar os principais ativistas.
Os “atos de repúdio”
Uma das armas mais repugnantes que a DSE usou, nos dias anteriores ao 15-N, foram os chamados atos de repúdio. Voltamos ao artigo de Lisbeth González: “repetiu-se em Cuba, de maneira massiva, um dos capítulos mais obscuros da sua história: voltaram os ‘atos de repúdio’ (ou manifestações de repúdio), eventos organizados pelo poder político para através de gritos, impropérios e todo tipo de violência verbal, atacar o espaço mais privado dos que divergem: a família, o lar.”
E prossegue: “Imagine despertar com uma turba de gente à frente da sua casa a chamar-lhe ‘contrarrevolucionário’ e mais, com uma manifestação política organizada na sua porta, no seu bairro, à frente dos seus filhos e pais. É isto um ato de repúdio, uma coisa que era habitual e embaraçosa na Cuba dos anos 80, de que muitas vezes se falou, algo que envergonha muitos cubanos, que se repete hoje, com a estridência das redes sociais pelo meio.”
O resultado foi que no dia 15, apesar das tentativas de última hora de alterar os planos da Arquipélago, ninguém compareceu aos locais das manifestações. E o jovem dramaturgo Yunior García Aguilera, principal porta-voz da Arquipélago, os nervos arrasados pelo assédio, a manutenção em cárcere privado dele próprio, sua mulher e sua sogra (os manifestantes do “repúdio” não os deixavam sair à rua), acabou por ceder à pressão e viajou para Madrid.
Leonardo Padura: ‘Uma demonstração de fraqueza’
Vitória esmagadora do governo? Talvez não. Para Leonardo Padura, autor de “O Homem que amava os cães”, o maior escritor cubano de hoje e um dos maiores de sempre, “negar a diversidade de critérios, impedir a circulação da opinião diferente, mais do que sinal de força é uma demonstração de fraqueza”, afirmou, no dia 17, numa entrevista ao La Vanguardia.
E insistiu: “A memória desses atos de repúdio, com ovos, paus e pedras no ano de 1980, continua a ser uma mancha indelével da política cubana. Mas parece-me que replicá-los a estas alturas da história, mais do que uma demonstração de força, coesão, apoio popular, é uma solução desesperada que mostra uma grave miopia política e a mencionada demonstração de fraqueza.”
[1]A escritora cita o título livro “La Paz de los sepulcros”, do mexicano Jorge Volpi. “Tomo emprestado este título para resignificá-lo”.
[2]Na ânsia de encontrar justificações para ficar ao lado do governo cubano neste episódio, alguma esquerda chegou a afirmar que nas manifestações em Cuba tinham sido exibidas bandeiras dos Estados Unidos. Mas não há uma única prova documental dessa alegação. As fotos de manifestantes com bandeiras dos EUA eram todas de manifestações no exterior.
[3]Curiosamente, quando a música já fazia sucesso, descobriu-se que em 1999, num discurso aos jovens, o próprio Fidel Castro tinha formulado esse slogan. O Granma teve de admiti-lo, acusando então os rappers de… plágio!