No livro “The Great Good Place”, o sociólogo urbano americano Ray Oldenburg disserta sobre os “terceiros lugares”. Sítios de acesso público – como cafés, centros comunitários, cabeleireiros, bares, bibliotecas e parques – e que cumprem uma função social diferente da casa e da do local de trabalho. Promovendo a interação livre e teoricamente desinteressada entre pessoas, servem como equalizadores sociais, facilitadores do envolvimento cívico e âncora à vida em comunidade. A ágora na Grécia Antiga ou a taberna no período da Revolução Americana são exemplos de espaços que cumpriam estas funções. Ou ainda os cafés em Portugal no período pré e pós-revolução. O fenómeno da decadência e do desaparecimento destes terceiros lugares tem sido extensamente documentado e explicado por um conjunto de causas geralmente apontadas, como os processos de gentrificação e suburbanização das cidades, a precarização do trabalho e a alteração nos padrões de consumo.
O advento da era digital e a massificação da Internet nos anos 90 pareciam configurar um remédio para esta decadência, prometendo a universalização do acesso à informação, a democratização da participação no debate público e a comunhão da humanidade que, pela primeira vez na história, se encontrava conectada numa rede cibernética global. Tim Berners Lee, o pai da World Wide Web, via nesta rede o propósito de “servir a humanidade”, assumindo que devia ser “aberta, acessível e livre para todos”. O espírito da Web, nostalgia e revivalismo à parte, integrou nos primeiros anos estes princípios, até certo ponto. Os atuais grandes impérios da Internet ainda não existiam, ou estavam numa fase muito embrionária. O sentimento geral era de deslumbramento.
A euforia e tecno-otimismo utópico da chamada Web 1.0 culminou na bolha especulativa do “dot-com” e subsequente crash, em 2000. Este foi um momento charneira em que o capital percebeu que, para vingar comercialmente na Internet, não bastava transportar para esta os mesmos modelos de negócio que até aí existiam. Mais, não se podia continuar a ignorar a essência da Internet como meio social. É aí que surge a Web 2.0 – uma nova etapa da Internet, focada nas suas componentes mais interativas e no conteúdo gerado por utilizadores. É também neste período que se consolidam a esmagadora maioria dos websites mais usados atualmente, como a Amazon, o Facebook, o YouTube, o Twitter e o Google.
Para explicar este salto, Ben Tarnoff (escritor e historiador da Internet) invoca a distinção entre as subordinações “formal” e “real” do trabalho, introduzida por Karl Marx. Segundo Marx, a subordinação formal é a primeira forma de subordinação do trabalho ao capital, representando uma fase embrionária da produção capitalista na qual os processos de trabalho dos modos pré-capitalistas são incorporados numa estrutura capitalista. O capital adquire a força de trabalho mas não controla o seu processo, ou seja, o trabalho como atividade não muda de forma mas passa a estar subjugado aos interesses dos capitalistas, em vez de servir senhores feudais ou o consumo próprio. Por outro lado, a subordinação real representa uma fase mais avançada em que os próprios processos produtivos são subordinados ao capital, com o avanço industrial e o advento do “modo de produção especificamente capitalista”. Diz-nos Tarnoff que a Web 1.0 dos anos 90, apesar de existir sob o regime de propriedade privada, ainda não estava otimizada para o lucro e por isso os vestígios do antigo mundo ainda eram predominantes. As lojas na Internet eram apenas lojas – continuavam a ter stock e armazéns e a principal novidade era que, em vez de se deslocarem a uma loja física , os clientes podiam comprar a partir do sofá. Por esta altura ter-se-ia dado ainda apenas a subordinação formal da Internet.
Só a partir dos anos 2000 é que o verdadeiro potencial extrativo da Web se começa a cumprir. O capital percebe que qualquer atividade online, qualquer interação, é passível de ser mercantilizada. As maiores lojas já não têm armazéns e nem sequer vendem produtos – sites como o eBay e a Amazon lucram principalmente a partir da intermediação entre compradores e vendedores. A Google cria um império mercantilizando o comportamento dos seus utilizadores através da venda de anúncios personalizados. Redes sociais como o Facebook vivem à base do conteúdo gerado pelos próprios utilizadores. Instaura-se o capitalismo de vigilância, em que toda e qualquer informação sobre o comportamento dos utilizadores pode ser extraída e vendida. Cumpre-se a visão de Bill Gates para a Internet: ou o “mercado final”, como lhe chamava, . Veja-se a idealização do próprio, em 1995, para o futuro da internet:
“Um sítio onde nós, animais sociais, iremos vender, trocar, regatear, discutir, conhecer pessoas novas e conviver. Pense na azáfama da Bolsa de Valores de Nova Iorque, ou de um mercado de agricultores, ou de uma livraria cheia de pessoas à procura de histórias e informações fascinantes. Terá lugar todo o tipo de atividade humana, desde negócios de milhares de milhões de dólares a namoros.”
Por outras palavras, as relações sociais tornaram-se indistinguíveis de relações de mercado.
A Internet deixou de ser um espaço onde apenas se vai, deixou de ser um mundo paralelo em que se assumem outras identidades, com regras e códigos próprios. A Internet tornou-se uma mera extensão permanente da nossa vida pública e privada. Segundo um inquérito realizado pela Universidade de Stanford nos Estados Unidos, a principal forma de junção de pares românticos era através de amigos ou familiares – pelo menos desde o início do estudo na década de 50 e até ao início da década de 2010. Outras formas comuns eram a convivência no local de trabalho ou em bares. Hoje, essas formas têm pouca preponderância. A esmagadora maioria dos casais conhece-se através da Internet. Talvez até se possa dizer que o mundo offline é, esse sim, uma extensão de um mundo social que é mediado digitalmente. A forma como as interações sociais são mediadas tem, portanto, um grande impacto na forma como a sociedade é moldada. Infelizmente, a Internet não é, para a maior parte dos seus utilizadores, composta por terceiros espaços onde indivíduos podem conversar de forma livre e aberta. Tarnoff introduz a metáfora dos centros comerciais como exemplo de “espaços públicos” privatizados. Nestes espaços as pessoas encontram-se, interagem socialmente ou comercialmente, mas sempre num contexto de consumo. Nesta Internet não é diferente. Grupos “comunitários” do Facebook e os fóruns do Reddit parecem ser exemplos paradigmáticos de terceiros lugares digitais. No entanto, em vez de facilitarem relações autênticas e pessoais, assemelham-se a centros comerciais cibernéticos simulados que satisfazem o insaciável ethos consumista capitalista. É assim com o algoritmo do Facebook a escolher o que vemos e com o que interagimos, alimentando câmaras de eco e extremismos. É assim com o TikTok que decide por nós a que narrativas devemos ser expostos, privilegiando as mais chocantes e, portanto, as mais racistas e machistas, intoxicando debate público. Também é assim com o algoritmo de ordenação do Tinder que cria uma escassez virtual de potenciais parceiros românticos que só pode ser superada após a compra de um pacote “premium”, contribuindo para a grave crise de saúde mental que vivemos.
Mas não ficamos por aqui. O futuro da Internet, no paradigma da rápida evolução de tecnologias de inteligência artificial generativa (que estão na base de produtos como o ChatGPT) é ainda mais anti-humana. As aparentes interações sociais permanecem, mas dispensa-se a necessidade de ter uma pessoa do outro lado da linha. Hoje, muitos dos conteúdos que vemos nas redes sociais são totalmente geradas por algoritmos. A humanidade torna-se dispensável.
A autonomia e o controlo sob as nossas interações sociais é constantemente ameaçada por mediadores digitais com um só objetivo: o lucro. Mas não tem de ser assim. Os objetivos que orientam as formas de mediação digital podem ter outra natureza. Aqui e ali, é a Internet permite estabelecer redes solidárias, partilhar informação, promover discussão e aproximar pessoas que doutra forma dificilmente se conheceriam. A Wikipédia será talvez o melhor exemplo que temos hoje de um projeto sem fins lucrativos de grande escala que mantém, de forma controlada e com os seus problemas, os princípios de participação e de abertura da ideia utópica da World Wide Web. Também no digital, é necessário juntar forças e idealizar realidades alternativas. É preciso desprivatizar a Internet.