A hierarquização das lutas traça uma linha separadora entre a esquerda conservadora e uma esquerda progressista, precisamente na medida em que o pluralismo exprime-se como alternativa à não aceitação da diferença.
Se é expectável que princípios éticos e filosóficos sustentem as bases doutrinárias de uma determinada orientação política, seja ela de direita ou de esquerda, o mesmo já́ não se aplicará quando se trata de contaminação programática por preceitos de índole moralista e anacrónica. Se, no primeiro caso, trata-se de um natural enquadramento ético-ideológico de uma corrente, no segundo estaremos já no campo da intolerância e da não aceitação da diferença.
Questões relacionadas com as liberdades individuais e o direito à autoafirmação, como a morte medicamente assistida, a abordagem as questões das drogas para lá dos modelos clínicos ou terapêuticos (felizmente já́ ultrapassado, em certa medida, o paradigma jurı́dico-repressivo) ou o reconhecimento do trabalho sexual como trabalho, fazem, por vezes, ressoar um puritanismo bafiento em ambos os quadrantes do espectro político mais conservador. Surpreendente é quando tal ocorre à esquerda.
A demissão dos agentes mediadores
Longe de se defender um modelo de compartimentação das causas ou uma perspetiva atomista dos fenómenos, importa notar que, na esteira do preconceito dogmático, sobressaem lutas que, votadas a um pendor marginal ou desviante, permanecem do lado de fora das narrativas da inclusão, da liberdade e da igualdade. Depois de proscritas pelos grandes agentes mediadores, como a igreja, sindicatos, organizações de base comunitária (nem todas, mas sim, é um facto!) ou mesmo pela maioria dos media, acabam também banidas do âmbito de concretização da justiça social e de uma parte daquele que seria um dos seus últimos redutos: a esquerda – neste caso, pela mão das suas alas mais conservadoras.
Direitos Humanos: uma questão de espera?
Em confronto com tendências progressistas que saem em defesa do pluralismo e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade – entendendo, nesse sentido, que diferença e igualdade não são incompatíveis -, este conservadorismo, pelo contrário, convive pacificamente com a ingerência de um paternalismo de Estado sobre as esferas íntima e pessoalíssima do sujeito, que se precipita na proteção do indivíduo “contra si mesmo”. Concomitantemente, e sob o desígnio de uma hierarquização das lutas, pugna por um controlo social sobre condutas que, de algum modo, tornam candente o elemento da diferença e que, à luz dessa lente, inquina o processo de transformação coletiva.
Prosseguindo com os exemplos acima apontados, veja-se a recusa destes setores no reconhecimento do direito à escolha no que tange à morte medicamente assistida ou ao enquadramento do trabalho sexual, por se entender que tais opções sempre seriam condicionadas por uma conjuntura marcada pela falta de acesso a recursos materiais ou a oportunidades. Emana daqui um afastamento do direito à autodeterminação nestas matérias, por se questionar a validade de um consentimento livre, voluntário e consciente, como se de pessoas desprovidas de capacidade de agência ou inabilitadas se tratasse. Descortina-se, assim, uma certa aura messiânica que estabelece a abolição do capitalismo como condição única para o reconhecimento daquilo que se esperaria como direitos intrínsecos a todo e qualquer ser humano. Num exercício de paralelismo, questiona-se a sensatez de se aguardar por condições ideais (leia-se, a supressão do modelo económico capitalista) para se encetar políticas e estratégias de combate às alterações climáticas…
Uma luta de (quase) todos?
No caso particular do trabalho sexual, esta ortodoxia à esquerda tem vindo a tornar-se mais flagrante, cindindo, inclusivamente, o feminismo que se tem visto parcelado, por um lado, por tendências pró-direitos de profissionais do sexo e, pelo outro, por correntes de cariz proibicionista que vão beber daquele conservadorismo e que, sob um discurso panfletário de exaltação do resgate, distinguem entre “mulheres prostituídas” e empoderadas, vítimas e não vítimas, dignas e não dignas, etc. O mesmo se verifica quando estas narrativas são utilizadas como arma de arremesso, pelas próprias organizações sindicais, contra movimentos de base comunitária pró-direitos para o trabalho sexual – como, aliás, se tem tornado escandalosamente explícito no tratamento vexatório que pessoas e movimentos representantes desta causa têm sofrido, de forma recorrente, nas marchas do 1o de Maio. Falsas generalizações e correspondências sensacionalistas entre prostituição, miséria, exploração e consumo de drogas, revestem-se de versões encapotadas de exercício de um controlo social cujo desígnio investe no silenciamento da diferença e na tomada de decisões em nome de outrem. Com efeito, não deixa de ser digna de nota a constatação de que as forcas moralistas enfileiradas na denegação da autonomia, da capacidade de agência e da liberdade sexual de pessoas trabalhadoras do sexo tenham, entre as suas trincheiras, movimentos feministas. Tal como é surpreendente a recusa na observância de direitos laborais (incluindo o direito ao associativismo e organização sindical) para este setor de atividade – pasme-se… por parte de estruturas sindicais.
No que concerne ao uso de drogas, as coisas não sucedem em moldes distintos. Se, justiça seja feita, repousa por toda a esquerda um clima de unanimidade que toma como ultrapassado o modelo do junkie delinquente, facto, porém, é que esse consenso sucumbe a partir do momento em que se busca uma emancipação perante o paradigma do junkie doente e se parte para uma dimensão hedonista dos consumos, encarada, por algumas tradições, como um elemento de ameaça à coesão da classe trabalhadora.
Estes mecanismos de controlo social consubstanciados na produção e reprodução de narrativas moralistas face a determinadas condutas ou atitudes, assim como numa tutela paternalista sobre os corpos, parece buscar a sua base de sustentação, do lado da esquerda conservadora, numa pretensa hierarquização das lutas, para a qual se revela necessária a manutenção de uma cultura operária esconjurada de elementos ameaçadores da consciência e coesão de classe, ao mesmo tempo que parece pretender cooptar traços agregadores em torno dessa organização, como o pudor, a monogamia, a família, a heterossexualidade ou determinados consumos.
Para uma igualdade entre a diferença
Por muito que, num plano discursivo e formal, estes setores demonstrem um claro afastamento do quadro axiológico judaico-cristão e das direitas conservadoras, verdade é que, em termos substanciais, parecem fazer-lhes concorrência direta na defesa da moral e dos bons costumes, inclusivamente, aquiescendo com uma inversão dos papéis do Estado enquanto intervencionista no que concerne a liberdades individuais e abstencionista quanto à previsão de direitos programáticos em determinadas matérias.
Não será no caminho da anulação da diferença que se encontrarão narrativas comuns aptas a promover a coesão, a empatia e o sentido de comunidade. Pelo contrário, uma esquerda situada e de inspiração humanista só poderá encontrar o seu rumo na celebração conjunta da diversidade, da liberdade e da igualdade.